GRAMADO - Quarto longa-metragem exibido dentro da Mostra Competitiva do Festival de Cinema de Gramado, na noite de terça-feira (19), "A Natureza das Coisas Invisíveis" é uma celebração à sabedoria popular. O filme da diretora estreante Rafaela Camelo tem duas partes distintas, que, em contraposição, fazem um retrato menos afetado e mais espiritualista da relação entre crianças e idosos.
A partir de dois cenários diferentes (apresentados como apostos), um hospital e uma casa interiorana, a narrativa aborda o ciclo da vida, do nascimento à morte, como um necessário encontro sobre os mistérios da vida, por um viés fundamentalmente feminino. Quando duas famílias formadas por mães separadas e filhas únicas se cruzam, o filme caminha uma compreensão amorosa do ciclo da vida.
Na primeira parte, a história se concentra nas crianças, introduzindo lentamente os elementos não-realistas, como um porco que acompanha Glória, como se fosse um amigo imaginário da filha da enfermeira. Sempre levada para o trabalho da mãe, o que aponta aqui para a ausência paterna, ela acaba encontrando uma garota de mesma idade, Sofia, que entra no hospital após a bisavó sofrer uma queda.
A relação entre as meninas se desenvolve com naturalidade dentro do hospital, resultando numa cena muito bonita sobre a questão da morte quando elas se deparam com roupas e objetos deixados por pacientes. O convívio se estende as mães, com a chegada da personagem de Camila Márdila, culpabilizada por deixar uma criança cuidando de uma idosa merecedora de cuidados.
A bisavó entra num estágio terminal, com o filme ganhando um outro movimento, quando mães e filhas vão para o interior juntas para, de certa forma, participar dessa despedida. Nesse aspecto, a trama se configura como um ritual, que transforma essa perda numa bela passagem, marcada por elementos de sabedoria popular que foram sendo perdidos ao longo do tempo.
Numa determinada sequência, Glória tem um cicatriz infeccionada, na altura do coração, e o tratamento não é feito pela mãe, mas sim por uma anciã, que usa ingredientes naturais, da flora do lugar. A cirurgia coronária da garota smboliza a afetividade transbordante da personagem, que faz um interessante diálogo com outro "problema" interno de Sofia, sobre a questão identitária dela.
Numa cidade interiorana, que teria, na imagem perpetuada pelo cinema, uma característica mais conservadora, é promovido o enterro da vida anterior de Sofia, com o filme caminhando para o seu desfecho em um olhar pouco usual sobre a finitude, fechando belamente a relação entre crianças e idosos, com as primeiras sempre abertas ao novo — algo que parece se dissipar na fase adulta.
Há muitas proximidades entre "A Natureza das Coisas Invisíveis" e a animação japonesa "A Viagem de Chihiro" (2013), de Hayao Miyazaki. Especialmente na cena em que Chihiro tem seu nome alterado após a sua morte infantil, se podemos dizer assim. No desenho, também há uma discussão sobre a permanência dos valores tradicionais, que perdem cada vez mais terreno para o progresso desenfreado.
Outro ponto coincidente é lançar esse olhar sobre o tema espiritualista a partir de duas meninas. Assim como em "Nó", de Lais Melo, primeiro concorrente exibido no Festival, as mulheres se sobrepõem na busca de um mundo com maior afetividade, em que se faz necessária uma grande rede de apoio para a formação de uma geração que cresce em meio a famílias fragmentadas. E isso dá, primeiramente, por uma ação fundamentalmente feminina.
(*) O repórter viajou a convite da organização do Festival de Cinema de Gramado