“Kintsugi, 100 Memórias”, espetáculo que estreia em Belo Horizonte nesta quarta-feira (20/8), o grupo de Campinas Lume Teatro, que celebra seus 40 anos, leva para os palcos uma “colcha de retalhos”. A montagem, cujo processo de elaboração começou em 2017, não pretende contar uma história linear, com início, meio e fim.
“São muitas camadas possíveis de leitura”, salienta Jesser de Souza, um dos atores do grupo, que divide cena com Raquel Scotti Hirson, Renato Ferracini e Ana Cristina Colla. Ao falar sobre tal característica, Souza reflete também sobre o fazer teatral. “O teatro é um encontro entre seres humanos, que, por algum momento, abstraem da realidade concreta para refletir sobre ela”, salienta.
Nessa narrativa fragmentada, o grupo faz uma mistura fina entre um conceito japonês, um estudo empírico sobre a doença de Alzheimer e 100 memórias individuais e coletivas. O ponto de partida foi outro espetáculo, o “Café com Queijo.”
“A partir dele, começamos a investigar o Alzheimer sob o pretexto de estudar memória e esquecimento”, conta. No processo, o grupo visitou a ala neurológica do Hospital das Clínicas da Unicamp, onde se submeteu a exames para detecção do Alzheimer, entrevistou familiares e acompanhou três pacientes com a enfermidade.
Com o material em mãos, o grupo convidou o argentino Emilio García Wehbi, fundador do grupo El Periférico de Objetos, para dirigir a montagem. “Ele chamou a atenção para o fato de que não há o que fazer diante do Alzheimer. Existem, na verdade, memórias que escolhemos apagar, como os traumas, e também as negadas, como a tortura, o golpe de 1964 e a escravidão, colocadas em segundo plano ou eliminadas. Então, ele nos orientou a não negarmos o Alzheimer, mas transformá-lo em um disparador de reflexão”, explica o ator.
Garcia também provocou o grupo a pensar em objetos pessoais que remetessem a memórias que pudessem ser compartilhadas com os espectadores. “Eu queria levar cartinhas de amor escritas pela minha primeira namorada, mas o Emilio disse que isso não interessaria a ninguém”, lembra Souza.
O processo resultou em um inventário de 100 memórias individuais, do grupo e sociais, do Brasil da ditadura à redemocratização. Os relatos vêm acompanhados de objetos que resistiram ao tempo, como relíquias de família, fotografias, diários, uma coleção de moedas, revistas e peças de roupa.
“A sonoridade do número 100 remete à palavra com S, daí cria-se o jogo do ‘sem memórias’”, relata. “O espetáculo começou a ser criado em 2017, um período de transformação política muito forte no país. Não é um espetáculo panfletário, mas falamos sobre esse processo de democratização ameaçado, de uma reparação de algo que se rompeu”, conta.
E é aí que entra o conceito japonês de Kintsugi, técnica de restauração de cerâmica que utiliza laca (uma espécie de cola) misturada com ouro para unir as peças quebradas. “Essa técnica surgiu ainda em uma dinastia antiga. Um governante tinha um jogo de chá do qual gostava muito, mas que se quebrou. O jogo foi enviado a artesãos para fazer o reparo, as peças foram emendadas com grampos de metal e voltaram muito feias. Então, foi desenvolvida essa técnica de reparação, que, em vez de esconder as fissuras, as valorizam”, aponta.
“Esse gesto acabou se tornando uma metáfora e filosofia oriental. A ideia é acolher as rupturas, porque elas fazem parte da vida. Se você não sucumbe a elas, nem simplesmente descarta o que se quebrou, mas se refaz sem ignorar essas marcas, passa a valer mais. É comum resumir esse processo com a palavra resiliência: não se trata de se lamentar, mas de se transformar junto com o todo”, analisa o ator.
Desenho sonoro
No espetáculo “Kintsugi, 100 Memórias”, a música é elemento fundamental. Estudos revelam que sonoridades conhecidas ativam lugares de memória que “driblam” o hipocampo, primeira região afetada pelo Alzheimer. “Por ter um forte elemento afetivo, a música consegue driblar o hipocampo e chegar até essas memórias”, comenta Jesser de Souza.
O Lume Teatro convidou Janete El Haouli e José Augusto Mannis para assinar o desenho sonoro, representado por três peças musicais de Chopin. “Essa sonoridade funciona como uma névoa que envolve o espetáculo. Representa um quinto ator, que caminha conosco e que está sempre presente”, afirma.
Em paralelo às pesquisas sobre o Alzheimer, o grupo também convidou o performer Flávio Rabelo e a coreógrafa e bailarina Jussara Miller para fazer provocações artísticas. “No nosso processo de criação, convidamos algumas pessoas para nos provocar. Se você está confortável, é preciso duvidar. É necessário haver instabilidade, trazer vozes que nos tirem do lugar comum”, justifica Souza.
Ações gratuitas
Completando 40 anos de trajetória, o LUME oferece ainda uma programação com três ações gratuitas. No dia 23/08 (sábado), às 15h, ocorre a exibição do vídeo-desmontagem “Eu me lembro: Flanando por Kintsugi – 100 memórias”, seguida de conversa com o elenco. A proposta do vídeo é “descosturar” para o público o processo de pesquisa e criação da obra, que estreou em maio de 2019.
No dia 30/08 (sábado), também às 15h, Renato Ferracini ministra a palestra/conferência “Presença, Corpo e Coletividade”, em que busca pensar o corpo e a presença cênica como enlace poético, ético e coletivo entre ator/público/espaço/tempo. Para participação na exibição do vídeo-desmontagem, é necessário retirar o ingresso gratuito no site ccbb.com.br/bh. Já para participar da palestra, a pessoa interessada deve se inscrever por meio de preenchimento de formulário digital, disponível neste link.
E, no dia 06/09 (sábado), será realizado, após espetáculo, o bate-papo “Sobre memórias, processos e singularidades”, em que os atores do LUME discutem sobre memória como lugar de invenção e não como arquivo, propondo à plateia a seguinte questão: o que o público não gostaria de não esquecer? Para participar do bate-papo, não é necessário retirada de ingresso.
SERVIÇO
O quê. Espetáculo “Kintsugi, 100 Memórias”
Quando. De 22 de agosto a 15 de setembro de 2025 (sexta a segunda), às 19h
Onde. Teatro II do CCBB-BH (praça da Liberdade, 450, Funcionários)
Quanto. R$ 15 (meia-entrada) e R$ 30 (inteira), pelo site ccbb.com.br/bh e na bilheteria
Sessões com interpretação em Libras, aos sábados