Semanas atrás, diante da plateia que lotava o Teatro Adolpho Bloch, no Rio de Janeiro, José de Abreu se sentiu mal. Tonturas, o chamado “teto preto”. A respiração ficou mais rápida, resultado de uma cena muito difícil de ser encenada. O ator preferiu fazer um intervalo de cinco minutos. O atendimento médico chegou. Alívio: a pressão estava ótima. Foi só um susto, mas ele teve medo de que algo pior pudesse acontecer. “Foi horrível”, conta. José de Abreu, então, toma um copo d’água, faz uma breve caminhada e volta. O pano se abre. E o público aplaude de pé.
O episódio dá a exata dimensão da complexidade emocional exigida em cena e do quanto o ator se entrega em “A Baleia”, espetáculo que viaja pelo Brasil desde junho e que chega a Belo Horizonte neste fim de semana – sábado e domingo – para sessões (mais informações no fim da matéria) no Cine Theatro Brasil.
A história se passa numa cidadezinha eminentemente religiosa chamada Moscow, no estado americano de Idaho. Charlie, interpretado por José de Abreu, é um professor de inglês que vive isolado em seu apartamento. Ele enfrenta uma obesidade severa e problemas de saúde graves, em grande parte decorrentes de traumas do passado. Após a morte de seu parceiro, ele mergulha em um ciclo de compulsão alimentar, luto, culpa e autodestruição, ao mesmo tempo em que tenta se reconectar com a filha, uma adolescente hostil e problemática.
O “teto preto” de José de Abreu no palco há algumas semanas se justifica pela caracterização do personagem – mas não só. Para viver um homem de quase 300 quilos, o ator entra em cena com um figurino, assinado por Carlos Alberto Nunes, composto por barriga de látex, camadas de neoprene – tecido de borracha sintética flexível e resistente, muito usado em roupas de mergulho – e bolsas de gelo.
Embora haja o desconforto pela vestimenta, compreender e adentrar a psique de Charlie foi, de longe, a tarefa mais trabalhosa para José de Abreu – tão pesada que torna Charlie o personagem mais complexo que ele já interpretou em quase 60 anos de carreira.
“No começo pensei que fosse o peso de um corpo de 300 quilos, mas o mais difícil é o peso da culpa que ele carrega. O psicológico foi muito mais difícil. O Charlie é um homem inteligente e sensível, mas que também causa repulsa nas pessoas. Ele está destinado a morrer pela sua obesidade. É uma pessoa maravilhosa, mas sofre muito. Como uma baleia, é um baita animal sensível”, observa.
Se José de Abreu já terminou várias sessões aos prantos, esgotado e comovido após intensas 1h40, o mesmo acontece com o público. É impossível passar ileso e indiferente a Charlie, que acaba nos colocando vulneráveis diante de sua dor: “Eu acho que a gente chora junto, sabe? A gente vai vivendo essa loucura desse cara. Saio da peça arrebentado’”.
Baleia universal
“A Baleia”, escrita pelo dramaturgo norte-americano Samuel D. Hunter, ganhou os palcos originalmente em 2012 e, desde então, foi encenada em mais de 30 países e 12 idiomas. Em 2022, a peça foi adaptada para o cinema pelo diretor Darren Aronofsky. No filme, quem vive Charlie é Brendan Fraser. Por sua brilhante e dramática atuação, ele levou o Oscar de Melhor Ator em 2023. José de Abreu já conhecia o texto de Hunter antes de ver o filme. Aliás, o dramaturgo veio ao Brasil semanas atrás a convite de Abreu.
A peça tem conexões com “Moby Dick ou A Baleia”, clássico de Herman Melville (1819-1891) lançado em 1851. No livro, o animal não é só um bicho enorme, colossal, mas simboliza aquilo que é grande demais para ser controlado. No espetáculo, a baleia é a dor e a culpa que Charlie carrega dentro de si.
“A Baleia” marca a volta do ator aos teatros após um hiato de 12 anos – sua última aparição nos palcos foi em 2013, no espetáculo “Bonifácio Bilhões”, de João Bethencourt. O elenco de “A Baleia” também conta com Luisa Thiré, Gabriela Freire, Eduardo Speroni e a participação especial de Alice Borges. A tradução e direção é de Luís Artur Nunes, parceiro de José de Abreu em outras montagens.
A peça navega por temas como isolamento, homofobia, fragilidade, esperança, afeto, gordofobia, intolerância e aceitação. Embora se ambiente em uma pequena cidade estadunidense, a história poderia muito bem se passar em Belo Horizonte, Paris ou Buenos Aires, já que trata de sentimentos tão universais e genuinamente humanos.
Quem concentra e traduz todas essas emoções é Charlie, uma espécie de espelho que nos expõe e nos obriga ao autoconfronto com emoções ambíguas, contraditórias. Por vezes, sentimos repulsa de um homem de 300 quilos se masturbando; em outros momentos, somos impactados pela humanidade tocante de um sujeito sensível consumido pela culpa por ter amado outro homem, alvo de uma sociedade que jamais o perdoou por isso.
No fim das contas, a mensagem de “A Baleia” é de esperança, diz José de Abreu, que faz uma pausa para refletir e finaliza: “Mas é difícil dizer porque, como uma obra de arte, a peça entra de muitas formas no seu coração. Tudo aquilo que acontece na peça é tão próximo de todos os seres humanos, tão próximo de nós, que eu acho que cada um na plateia vira o Charlie”.
Programe-se
O quê. Espetáculo “A Baleia”, com José de Abreu
Quando. Sábado (23/8), às 21h, e domingo (24/8), às 19h
Onde. Cine Theatro Brasil (av. Amazonas, 315 – Centro)
Ingressos. Entre R$ 50 e R$ 140 pela plataforma Eventim