GRAMADO – Miguel Falabella gosta de gente. E ele reafirma isso diversas vezes ao falar sobre o longa-metragem “Querido Mundo”, que acaba de lançar no Festival de Cinema de Gramado, na serra gaúcha, dentro da mostra competitiva. “Eu sou alguém que olha para as pessoas. Eu converso com as pessoas, dou trela para todo mundo. Gosto de andar na rua, ir à feira... Desse olhar para as pessoas, para as nossas pequenas falhas. A vida da gente é isso”, assinala, citando como exemplo ainda um inusitado encontro com uma desconhecida num avião que partia de São Paulo.

“Eu estava no avião e sentou uma moça pernambucana bonita e elegante ao meu lado. Ela me disse: ‘Falabella, eu posso segurar a sua mão porque eu fico muito nervosa no avião’. E eu falei que podia, claro. E aí ela começou a me contar, com a gente de mãos dadas, a história da vida dela, sobre o apartamento dela em Recife que pegou fogo. Ela falava que tinha sido horrível, que jogava os tapetes da janela e que o povo os levava e que, pela manhã, quando o marido chegou, com o apartamento todo queimado, eu olhei para a cara dele e disse que não queria ser mais casada com ele”, recorda Falalbella, divertido.

“’Vou para São Paulo recomeçar a minha vida’, ela disse. Não sabia que estava fazendo comédia. Só na decolagem, a mulher me deu um roteiro. Eu podia não ter dado nenhuma atenção a ela, tirando a mão, pedindo licença e pegando um livro”, analisa. Baseado na peça homônima escrita ao lado de Maria Carmem Barbosa, apresentada na década de 1990, o filme tem nos encontros o seu grande combustível..” A minha vida foi feita assim. Tive grandes encontros com pessoas extraordinárias e sou um artista por causa delas.  Eu gosto de gente que gosta de gente. A minha dramaturgia é toda sobre isso”.

A adaptação cinematográfica sobre dois perdedores que se encontram no pior momento da vida deles, interpretados por Malu Galli e Du Moscovis, não deixou de lado as raízes teatrais. “Eu sabia que queria misturar as linguagens. Eu sabia que queria fazer um filme que deixasse claro a sua origem teatral. Eu fiz um preâmbulo, quase um road movie de Elsa (personagem de Malu) chegando na cidade grande. Fiz também um pouco da pré-história do personagem de Moscovis”, explica Falabella, que contou com a preciosa ajuda do codiretor Hsu Chien, de “Me Tira da Mira” e “Morando com o Crush”.

“São momentos em que o filme respira um pouco, mas basicamente ele é sobre duas pessoas aprisionadas em ruínas, no meio de escombros. Eu lembro que, enquanto eu e Maria Carmen escrevíamos a peça, a grande pergunta era a sobre possibilidade de se recomeçar do escombro. É possível recomeçar quando não sobrou mais nada? Nós começamos a escrever essa peça a partir de uma notícia real, sobre um botijão de gás que explodiu, no Rio de Janeiro, na noite de Ano Novo, em que uma mulher ficou presa no apartamento. Lendo a noticia, começamos a inventar a história”, detalha.

Em tom de fábula, “Querido Mundo” é praticamente todo em preto e branco, com exceção da sequência final. “Aquelas pessoas não têm cor, a vida não é colorida. Ela mesmo diz isso: ‘meu mundo não é colorido como na época de criança, em que tinha muitas possibilidades’. Ela é uma pessoa que se se permitiu ser abusada por aquele marido e não foi embora. Ela foi ficando, assim como acontece com milhares de mulheres. Aquele possivelmente acabaria numa tragédia maior”, comenta Falabella, que, na edição final, acabou eliminando grande

“Eu tinha muito mais comédia, mas cortei. Eu tinha uma grande sequência com a Dani (Winnitis), que, coitada, ficou prejudicada.  Era muito engraçada, mas achei que pegava um caminho e ia para um outro filme. Eu queria falar sobre aquilo que é o mais básico em nossa vida, sobre alguém que pare e nos ouça. Num mundo caótico, que tem tantas coisas mais importantes para falar e causas maiores, busquei falar sobre isso. É um abismo para o qual os dois olhando.  E quando se olha para ele, o abismo nos olha de volta. Acho que muita gente já se sentiu assim na vida. Eu já me senti assim em alguns momentos”, revela.

Como uma forma de homenagem, ele manteve, nos créditos, o nome de Maria Carmem, falecida em 2023. “Por uma questão de respeito, amor e de saudade. Foi minha parceira por muitos anos. Não quis tirar o nome dela. Na verdade, eu trouxe (a história) para os dias de hoje, mas bebi na fonte de um roteiro original que eu e Maria Carmem tínhamos estruturado lá trás. Por isso não quis tirar o nome dela”, explica Falabella, que tem no horizonte uma nova adaptação de “A Partilha”, peça de sua autoria de maior sucesso. “O Daniel Filho fez antes de mim. Talvez um dia eu refaça. Ela merece”.

(*) O repórter viajou a convite da organização do Festival de Gramado