Em determinado momento de “O Último Azul”, há um longo plano em que acontece uma espécie de briga de peixes de aquário, com tons dramáticos. No Festival de Gramado, onde o filme foi exibido fora de competição, após receber o Urso de Prata no Festival de Berlim, uma das perguntas a Gabriel Mascaro não poderia deixar de ser sobre como foi a experiência de dirigir seres marinhos, garantindo risos entre a plateia de jornalistas.
“Quem conhece a minha filmografia sabe que já dirigi boi”, afirma o cineasta pernambucano, entrando na brincadeira, ao citar o longa “Boi Neon” (2015). “Na verdade, o peixe <FI10>Betta</FI>, para quem não conhece, sempre disputa o espaço. Quando outro chega, há um confronto mortal”, explica Mascaro, que não deixou de “dar um jeitinho” usando efeitos especiais. “É uma mistura, que serve para mostrar a ambivalência ao ver beleza e violência ao mesmo tempo”.
Com Rodrigo Santoro e Denise Weinberg, o filme estreia nesta quinta-feira (28) com uma abordagem diferente a respeito da velhice. “Em geral se fala desse corpo idoso perto da finitude, com os conflitos sendo em torno da despedida da vida ou sobre aquela pessoa que já não pertence mais ao progresso, a uma sociedade que ficou muito veloz. Eles são raramente retratados e, quando são, (o tema) é finitude ou nostalgia. Aqui não. É um filme sobre pulsão de vida”.
Mascaro ressalta que essa potência se dá por meio da performance de Denise, “que manifesta esse desejo e o orgulho de envelhecer”. Para ele, o filme faz esse alerta num mundo cada vez mais pressionado para esconder o envelhecimento. “Todos nós estamos velhos ou vamos envelhecer um dia. É sobre esse lugar, uma mensagem muito simples, de que nunca é tarde para encontrar outro sentido para a vida”, enfatiza o realizador.
A exibição de “O Último Azul” em Gramado ganhou um clima festivo, de comemoração pelo bom momento vivido pelo cinema nacional, premiado no Globo de Ouro (Melhor Atriz, para Fernanda Torres, por “Ainda Estou Aqui”), no Oscar (Melhor Filme Internacional, para “Ainda Estou Aqui”) e em Cannes (Melhor Direção e Ator, para Wagner Moura, por “Agente Secreto”, outra produção pernambucana).
“O filme surgiu neste momento e vem fortalecido por nosso histórico, nossa filmografia e nosso orgulho de ser brasileiro. Foi uma emoção sem explicação estar num festival que premiou filmes que marcaram a minha história antes que eu pudesse imaginar fazer um filme, como ‘Central do Brasil’. Eu era pivete e me lembro do filme em Berlim, da comitiva, de Fernandona... Isso me marcou como pessoa, antes mesmo de ter feito cinema”, celebra.
A festa culminou com o Kikito de Cristal recebido por Santoro. A participação do ator é pequena, mas fundamental para a compreensão da jornada da protagonista. “Eu e o Gabriel já vínhamos flertando há algum tempo e, quando ele me mandou o roteiro, eu me senti imediatamente arrebatado pela história. Achei genial a ideia de lançar um olhar na contramão do que a gente está acostumado a ver no masculino”, reflete Santoro.
Ele observa que a ideia de um personagem que pilota um barco remete à noção de liberdade. “Mas, no caso de Cadu, o barco é uma prisão. Ele é um homem que sofre a dor de estar distante de seu grande amor, coisa que não nos acostumamos a ver na vida de um homem. O filme começa com ele em estado de luto. No seu encontro com a Tereza (Denise), ele conquista o direito de acreditar que deve seguir o que está dentro do coração dele”, destaca.
Amazônia como personagem
Rodrigo Santoro salienta que o maior desafio de fazer um personagem com poucas cenas, sem uma narrativa completa para construir sua história, é que, “ao entrar em cena, ele já deve existir”. Essa preocupação fez com ele e Gabriel Mascaro conversassem bastante antes de filmar, “construindo um universo que não está sendo visto”.
Ele conta também que, ao ter como cenário os igarapés da Amazônia, pôde beber muito da fonte da natureza. “Ela também é personagem. Era alimento a todo momento dentro da gente”, comenta Santoro, que, sem celular e outros apetrechos tecnológicos, teve que entrar no clima plácido da região.
“Eu estava acelerado, e a hora não passava. Olhava para o dono do barco, Seu João, e o via encostadinho, na mesma posição. Fiquei com muita inveja daquele estado de espírito. Aí percebi que a primeira coisa que tinha que fazer era desacelerar e começar a sintonizar com aquele outro tempo”, lembra.
Denise, por sua vez, vê em Tereza um presente para qualquer atriz. “Fui abençoada pelos deuses e pelo Gabriel. Estar naquele lugar, estar com aqueles personagens e companheiros, com Gabriel na rédea curta, é muito bom. Quando você olha, já está em outra ‘vibe’. A Amazônia ajudou muito. Você tem que fazer muito pouco. Só pode atrapalhar”.
Para o cineasta, o filme representa o primeiro grande encontro do cinema nordestino com o do Norte. “Fui surpreendido com um casting local impressionante. Chegavam testes de elenco e eu ia escrevendo personagens novos a partir deles. Temos uma descentralização da lógica de produção, e está mais do que na hora de abrir mais espaço para o cinema do Norte”, enaltece.
(*) O jornalista viajou a convite da organização do Festival de Gramado