Nos minutos finais de "A Melhor Mãe do Mundo", a principal estreia desta quinta-feira (7) nos cinemas, surgem a melodia e as letras reconhecíveis de "Maria, Maria", na voz de Milton Nascimento. A canção assinada por Bituca e Fernanda Brant fala da força e da resiliência da mulher brasileira, duas palavras-chave para definir Gal, uma catadora de material reciclável que atravessa São Paulo para fugir do marido abusador.
"Além de ser uma das músicas mais líricas do nosso cancioneiro popular, é uma canção que o Milton fez para a mãe dele, né? (Uma mulher) Que teve que dar o filho pra adoção, porque não tinha condição de criar. Acho que ela tem a atmosfera da luta da mãe. A letra traz muitas das questões que o filme aborda", registra a diretora Anna Muylaert, em entrevista ao jornal O TEMPO.
Ela lembra do dia em que a música do Clube do Esquina entrou na trilha sonora, durante a fase de edição. "A gente tava querendo acabar (o filme) com afro-sambas. Ou com o Mano Brown cantando a reza de São Jorge (em 'Jorge da Capodácia'). E aí o montador Fernando Stutz falou: 'Ó, vou te apresentar aqui uma loucura'", recorda a cineasta de "Durval Discos" e "Que Horas Ela Volta?".
"O Fernando escolheu essa versão (de 'Maria, Maria'), que não é muito conhecida e que tem bastante violão e silêncio. Ele costurou a música no meio do diálogo e me mostrou. Na hora, eu falei: "'Uau. É isso'. Aí foi uma luta para conseguir (os direitos) . Era caro, né? A gente penou para conseguir, mas conseguimos. É um fecho de ouro, uma homenagem às mães do Brasil", conta Anna.
A homenagem se sustenta pela história conduzida de forma emocionante pela diretora, a partir de uma personagem aparentemente simples, com pouco estudo e que tira seu ganha-pão nas ruas. Shirley Cruz dá carne e alma a Gal. "Quando eu finalmente peguei o personagem, depois de ler aquele roteiro inteiro, eu entendi que não se tratava de uma mulher coitada", registra a atriz.
"Nessa altura do campeonato, eu já era amiga da Ana. A gente já tinha um afeto muito grande. Eu venho do 'Clube das Mulheres de Negócios' (filme anterior da cineasta). Eu também entendia que a Ana não ia querer essa mulher coitada, essa mulher que chora, que coloca pra fora. Até porque eu acho que trata-se de uma mulher que está perturbada", comenta Shirley.
A perturbação da personagem tem a ver com a forma como se relaciona com o marido (Seu Jorge), que não é muito diferente de grande parte da situação vivida por grande parte das mulheres no país. "Apesar de estar rompendo com o homem que ama, ela ainda sente tesão por ele, sabe? Quer sair daquela delegacia e dar para ele. Gal só está fazendo aquilo (sair de casa) por causa dos filhos".
Para ela, se não fosse pelo perigo que pode representar aos dois filhos, aquela situação talvez se perdurasse. "Acho também que é uma mulher que as lágrimas já secaram. Há quanto tempo ela não deve estar chorando escondida? Eu sinto uma coisa ressecada. Não há tempo para grandes escândalos e você precisa fingir estar bem", destaca Shirley, que também fez um trabalho de preparação do corpo.
Ela teve a orientação da professora de dança Gal Martins, cujas aulas se valem de animais como base. "Defiriram que eu seria uma búfala. Isso passou a ser uma referência física para ela. E para mim também, né? Porque, ajudava a trazer, no meio do caos, para uma concentração mais rápida. E eu sou de Oxum com Iansã. E Iansã é a búfala. Então, tudo fez sentido", completa.
Shirley Cruz é só elogios à preparadora, "uma presença muito forte, uma mulher negra e gorda cujo trabalho é discutir um corpo indignado". Para ela, "não pode haver corpo mais indignado do que o de uma mulher negra de quatro, puxando uma carroça de 300 quilos". Para a realização da cena, que exige muito fisicamente, a produção ofereceu uma dublê. Mas Shirley não aceitou.
"Não tinha porquê aceitar aquilo, porque puxar carroça me trazia tristeza e ódio. Era algo que eu revertia como combustível, para seguir nessa construção. Então, eu mesma puxava a carroça, e quando as crianças estavam em cima, aquele peso triplicava e vinha muito o (aspecto) emocional. Era o peso do mundo nas costas, toda a vulnerabilidade dessa imagem de uma mãe puxando carroça com criança e material reciclado dentro. Foi um trabalho lindo, mas duro", expressa.
Anna Muylaert afirma que buscou um outro olhar para a representação da mãe, ligando-a ao ser político. "Acho que a mãe é muito venerada como um ser afetivo, como um ser até religioso, mas como ser político ela simplesmente inexiste. Cada uma que se vire. Não importa se tem 15, 20 anos, se está em depressão, se tem dinheiro, se não tem. Não existe, por parte da sociedade, um olhar de 'Poxa, essa mulher é a educadora-mor'", lamenta.
A cineasta define a sua protagonista como um caso de sucesso. "Ela é a melhor mãe do mundo porque ela soube ir além dos desejos dela, pensando na prole, no futuro, em quebrar uma maldição para que não se repita com a sua filha. Mas, quantas mulheres não conseguem? E ficam ali, repetindo padrões que a filha vai repetir, que a neta vai repetir? A gente tem que abrir o olho para a importância política da figura da mãe", alerta.