Com estreia nesta quinta-feira, "O Rei da Feira" vem na onda dos filmes detetivescos, como "Entre Facas e Segredos" e a trilogia protagonizada por Hercule Poirot, em que todas as pessoas de um determinado ambiente são suspeitas de um assassinato, por carregarem motivos suficientes para desejarem aquela morte. A versão brasileira, porém, aposta mais no bom humor do que na investigação para descobrir o culpado.

Protagonizado por Leandro Hassum, o filme traz um mote interessante: a solução do caso representa bem mais que o prazer de encaixar todo o quebra-cabeça, motor das produções estrangeiras. Ela determina também a transformação da vida de um policial (Hassum) que tem um dom malresolvido, desde pequeno enxergando e se comunicando com pessoas mortas, numa espécie de maldição familiar. 

Monarca é como uma Oda Mae Brown, a marcante personagem de Whoopi Goldberg em "Ghost - Do Outro Lado da Vida" (1990), sem encarar de frente a sua capacidade mediúnica até que um assassinato o faz ganhar um companheiro do além e que não largará dele antes da resolução do caso policial. A principal diferença para "Ghost" é que o morto não é um exemplo de virtude e beleza como o Sam de Patrck Swayze.

Vivido por Pedro Wagner, Bode começa o filme como gerador de mal-estar numa feira de rua. Dono de uma banquinha de embutidos, sua curta aparição (como vivo) é um desfile de situações desagradáveis, exibindo um linguajar nordestino provocativo e apresentando-se como alcóolatra, mulherengo e pouco trabalhador. A sua saída de cena seria, portanto, um alívio para todos.

O desenvolvimento do personagem é um dos aspectos mais interessantes de "O Rei da Feira", partindo deste quadro de total repúdio (até mesmo do espectador) para alguém merecedor de compreensão. É aí que entra a sensibilidade de Monarca, que chama a atenção para a ideia de uma segunda chance para Bode, ainda que no plano dos mortos. Desta forma, a narrativa estabelece uma grande inversão de valores.

Pode-se dizer que há uma dupla redenção, já que Bode fará com que Monarca tome resoluções que foram adiadas durante uma vida inteira, ao esconder o dom paranormal e ter na mãe, literalmente, uma assombração, deixando-o suspenso no tempo. O desenvolvimento do personagem não tem o mesmo êxito de Bode, por ficar muito restrito a um humor caricatural, sem uma necessária intensidade interior.

O personagem de Hassum não "sofre", por assim dizer. A questão espiritual vira apenas, na maioria das vezes, um elo de contato com Bode, reproduzindo a estranheza provocada por conversas com seres que somente ele vê. A relação poderia ter sido melhor construída no início da narrativa, quando ainda eram crianças. Monarca apenas reage aos desdobramentos, pelo viés da comicidade característica de Hassum.

Apesar de ser o fio condutor e oferecer um desfecho climático na descoberta do assassino, a investigação não deveria ser o prato principal do filme, que, nessa área policial, deixa muitas pontas soltas (qual é a razão de a dona do bar dizer que Bode é o verdadeiro pai de seu filho? Questão levantada e não respondida na trama). O grande foco de "O Rei da Feira" deveria ser o espelhamento dos dois personagens.

Num filme que mescla tantos ingredientes (como o suspense policial e a compreensão da vida após a morte dentro de um microcosmo da sociedade brasileira), o diretor Felipe Joffily, de "Muita Calma Nessa Hora", incute uma concepção visual ágil e colorida, valorizando a diversidade de tipos daquele lugar. Nesta galeria, destaca-se principalmente o elenco nordestino, puxado por Wagner, Everaldo Pontes e Yuri Yamamoto.