Filha de um banqueiro francês e de uma artista americana, Niki de Saint Phalle (1930-2002) foi estuprada na infância pelo próprio pai. O violento e traumático episódio deixou marcas definitivas. Aos 18 anos, ela se casou e a maternidade veio logo. Em Nice, na França, para onde voltara após viver nos Estados Unidos com a família, a vida seguia sem muito entusiasmo e ser dona de casa definitivamente não fazia parte de seus planos. Abalada pela infelicidade, pela depressão e pela traição do marido, o músico e escritor Harry Mathews, Niki sofreu uma crise nervosa e acabou internada em um centro psiquiátrico em Nice, na França.

A violência agora vinha dos eletrochoques utilizados no tratamento, método comum naquele período – estamos falando dos anos 1950. Certo dia, Niki recebeu uma carta assinada pelo pai. No texto, ele confessou os abusos sexuais e pediu perdão. No sofrimento de um centro psiquiátrico, Niki, autodidata, começa a externar suas dores em desenhos feitos com os lápis de cor levados por amigos. Nos jardins, ela recolhia pedras, folhas e gramas, materiais que iriam compor suas primeiras obras. “Ou sou artista ou me suicido”, confrontou-se. Escolheu a primeira.

Rebelde, vanguardista, sarcástica, revolucionária, feminista, radical e antirracista, a franco-americana Niki de Saint Phalle transitou entre as ambiguidades e contradições da própria existencia – individual e coletiva –, voltou-se contra qualquer tipo de opressão e preconceito e se tornou um importante nome das artes na segunda metade do século XX.

Aberta nesta terça-feira (2/9) na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, a exposição “Niki de Saint Phalle. Sonhos de Liberdade”, que fica em cartaz até novembro, faz um importante trajeto pela vida e obra – no fim das contas, indissociáveis – de uma artista que tirou a violência de dentro de si e a transformou em testemunho artístico atemporal.

Entre esculturas, pinturas, assemblages e serigrafias, a mostra reúne 67 obras, sendo 66 do acervo do MAMAC (Museu de Arte Moderna e Arte Contemporânea de Nice) e uma obra da Pinacoteca de São Paulo, que sai pela primeira vez do museu desde que foi adquirida, em 1997. É a primeira vez que a maioria dessas peças são exibidas no Brasil.

“Tiros” e Nanas

No início da década de 1960, Niki chamou a atenção da cena artística francesa com as performances “Tirs” (“Tiros”), nas quais, diante de um público formado por amigos, colegas e convidados, usava um rifle e fazia explodir sacos de tinta sobre telas. Na Casa Fiat, o público verá algumas obras da série – incluindo “Tiro Ao Sapato” (1961), “Disparo Com Raquete” (1961) e Disparo À Distância” (1961) – e também uma vídeo-instalação que exibe cenas das catárticas criações.

Um depoimento sobre “Tiros” no catálogo da exposição dimensiona o caráter transgressor e libertário do projeto: “Atirei em: papai, todos os homens, pequenos, grandes, importantes, gordos, homens, meu irmão, a sociedade, a Igreja, o convento, a escola, minha família, minha mãe, todos os homens, papai, em mim mesma. Atirei porque isso me fazia feliz e me dava uma sensação extraordinária”.

“Niki de Saint Phalle. Sonhos de Liberdade” exalta a liberdade criativa da artista franco-americana Foto Flávio Tavares/O Tempo

Ao voltar seu olhar para questões do corpo feminino e temas como a violência de gênero, Niki recebe grande reconhecimento ao conceber as Nanas, figuras enormes e multicoloridas também expostas na capital mineira. A mostra também expõe telas que reproduzem as esculturas monumentais do Jardim dos Tarôs, parque que começou a ser erguido em 1979 no Sul da Toscana, na Itália, e foi inaugurado 20 anos depois.

Da Toscana, chegaram 50 Nanas infláveis que agora ocupam a Casa Fiat. Outro ponto alto é a instalação “Le Mur de la Rage” (“O Muro da Raiva”), em que Niki revela razões de sua fúria, que vão da fome e da injustiça a dilemas íntimos, como a falta de fé e a violência interior. Os visitantes também podem deixar seus sentimentos em um muro criado especialmente para a exposição.

Vida e liberdade

Curador da exposição e gerente de projetos do MAMAC, Olivier Bergesi ressalta o comprometimento incondicional de Niki com sua obra, cujas nuances temáticas e estéticas ganham contornos em “Niki de Saint Phalle. Sonhos de Liberdade”: “A morte sempre a acompanha, mas, ao virar artista, ela escolheu a vida. Niki sempre soube que seria uma heroína, que faria coisas grandes e importantes. A arte, para ela, foi como uma espécie de biografia, serviu para ela contar sua vida e seu sofrimento, suas felicidades e suas tristezas”.

O casamento com o artista Jean Tinguely, na década de 1970, e o posterior contato com os netos trouxeram certa serenidade ao dia a dia da autora. Niki de Saint Phalle se mudou para San Diego, na Califórnia, em meados dos anos 1990 e seguiu produzindo em diálogo com temas contemporâneos e ainda atuais até o início dos anos 2000, quando faleceu vítima de um enfisema pulmonar causado pelo prolongado contato com materiais tóxicos usados em seu trabalho. 

De Pollock a Gaudí, do Novo Realismo francês à pop art, da arte africana aos movimentos da contracultura dos anos 1960 e suas reverberações sociais, políticas e comportamentais, Niki absorvia influências diversas sem se prender a um movimento específico.

A exposição que chega a BH ilumina esse aspecto fundamental e evidencia a autoralidade e a marca criativa da artista. Não poderia, portanto, ser mais acertado o título da mostra. A busca pela liberdade é, essencialmente, o que moveu Niki de Saint Phalle em toda sua produção. 

Programe-se

O quê. Exposição “Niki de Saint Phalle. Sonhos de Liberdade”

Quando. Desta terça-feira (2/9) a 2 de novembro de 2025 – terça-feira a sexta-feira das 10h às 21h; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h (exceto segundas-feiras)  

Onde. Casa Fiat de Cultura (Praça da Liberdade, 10 – Funcionários)

Ingressos. Entrada gratuita