Psicodelia

Arnaldo Baptista tem livro de ficção científica lançado e prepara novo álbum

Lendário fundador de Os Mutantes também ilustrou edição especial do clássico “O Mágico de Oz, que saiu pela editora Antofágica

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 31 de janeiro de 2024 | 06:30
 
 
 
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Não é o Espantalho, nem o Homem de Lata, tampouco o Leão Covarde, e, muito menos, a heroína Dorothy. Com a sua inesgotável capacidade de surpreender o óbvio, Arnaldo Baptista, do alto de seus 75 anos, conserva a liberdade da infância e revela que seu personagem favorito em “O Mágico de Oz” é o mais fiel dos companheiros da garota perdida em busca do arco-íris, e que, não obstante, provoca mil confusões. “O cachorrinho Totó”. 

Lendário fundador do grupo Os Mutantes, que, com o irmão Sérgio Dias e Rita Lee (1947-2023) colocou um tempero psicodélico no caldo tropicalista da música brasileira, Arnaldo ilustrou recentemente uma edição especial da editora Antofágica para o clássico escrito por L. Frank Baum em 1900, catapultado à fama mundial a partir da adaptação cinematográfica de 1939, que trouxe Judy Garland no papel da protagonista. 

Ele também escreveu um breve texto sobre seu processo criativo. “Me coloco no livro e vou junto: monstros, aventuras, perigos, prazeres, estupefação, todas essas coisas. Tem coisas inesperadas que acontecem na vida. Começa a ventar o vento, vem um ciclone, depois o cachorrinho Totó voa e vê coisas impossíveis de serem descritas. Existe a experiência, e existem coisas superiores a isso… E a gente vai levando”. 

Ficção

O assombro diante da existência dá o tom da outra novidade que Arnaldo traz na bagagem e que, de certa forma, conecta o passado ao futuro, numa perspectiva que o artista sempre conjugou em sua obra. “Ficções Completas” reúne dois contos e uma novela que Arnaldo escreveu na década de 1970, após a conturbada dissolução dos Mutantes. Publicados pela pequena e quase artesanal Grafatório Edições, “O Abrigo” e “The Moonshiners” permaneciam inéditos, enquanto “Rebelde Entre os Rebeldes” já havia sido publicado, mas, agora, ressurge em “versão radicalmente diferente”. 

“Eu, como um ser igual a todo mundo, penso que devo ter um objetivo na vida, mas que pode estar além do total conhecido. Foi assim que entrei no psicodelismo e em lados mentais que ninguém entende totalmente, só eu e algumas pessoas que conseguem me acompanhar. Nesse sentido, a rebeldia é boa quando a gente se encontra com o total sem ser o total”, filosofa Arnaldo, refletindo sobre as inspirações para suas aventuras literárias, que guardam semelhanças com os processos que ele desenvolveu na música, e que geraram hits do calibre de “Balada do Louco”, “Ando Meio Desligado”, “Desculpe, Babe”,  “Meu Refrigerador Não Funciona” e “Top Top”.

Em “The Moonshiners”, por exemplo, ele aborda o relacionamento de dois humanos com um par de alienígenas, tema que desde cedo o intrigou, misturando o sonho hippie com ufologia. “Eu vi um disco voador uma vez só, há muitos anos, e questionei o que poderia o estar guiando, porque ele fazia coisas que não dava para aguentar, se tivesse gente lá virava maçaroca. Então, pensei que devem existir raças que ficam livres numa pressão da atmosfera que, para a gente, é venenosa, e que alcançam um lado universal do total”, sustenta.  

Científica

Arnaldo se apaixonou pelos livros da série Futurâmica, que saíram no Brasil pela editora Ediouro na década de 1960, ainda na infância. Ali, se abria para ele o universo de Stefan Wul, autor de “O Império dos Mutantes” – que levou o cantor e apresentador Ronnie Von a batizar a banda com a qual Arnaldo faria história –, e Ray Bradbury, responsável pelo icônico “Fahrenheit 451” que François Truffaut transformou em filme. 

“Nesse sentido, eu me encontro perante vários itens do oculto que podem ser entendidos como deuses, mas eram simplesmente astronautas que ultrapassavam a luz. Não sei como, mas conseguiam”, sublinha. Ao adotar o gênero de ficção científica para seus escritos, o músico não deixa de notar o paradoxo contido na própria definição. “A gente pode fazer horrores na ficção, mas, se é científica, não podemos sair voando por aí”, provoca. Ao mesmo tempo, ele dá asas à imaginação. 

“Existem muitas fábricas de carros e motos, tipo BMW, Honda. Então, com o lado da ficção, posso criar motos Ferrari, Porsche. É uma coisa de piração, mas, às vezes, dá certo”, sugere. Ir além do impossível é o grande trunfo dos trabalhos de Arnaldo. Se não existe, é aí que ele cria, ou, nas palavras de Rogério Skylab no livro de ensaios “A Melodia Trágica” (2023), se lança “contra todo o contexto através da invenção”. 

“Existe o lado da levitação que os discos voadores têm. O homem consegue repelir o ímã que emite gauss (unidade de medida para aferir a densidade do fluxo magnético), então andei pensando que a gente podia fazer igual aos ETs fazem com os grávitons, que é a gravidade terrestre. Isso a gente ainda não fez. Podemos tentar”, incentiva Arnaldo, dedicado a transportar para a realidade e suas limitações científicas as mesmas possibilidades da ficção. 

Avô foi transformado em personagem

Exímio tocador de um violão construído por ele mesmo com canivete, pai de uma prole de 13 filhos “que dava para fazer um time de futebol inteiro” e prefeito de Avaré, no interior de São Paulo, que “nunca tomou posse direito”, o avô de Arnaldo Baptista foi fundamental para ele, “no sentido de conhecer tudo e desfrutar do possível”. Quando chegava à sua casa, Arnaldo dizia “bença, vô”, e a resposta vinha na ponta da língua: “Deus te abençoe, cabeça de boi”. 

Por essas e outras, Horácio virou personagem da novela “Rebelde Entre os Rebeldes”, como um supercomputador que, além de tudo, é pintor e, graças à inteligência artificial, passou da ficção para a realidade, ilustrando o volume com as criações literárias de Arnaldo, que acaba de sair pela editora Grafatório.

“Meu avô entendia muito do mundo. Ficam falando em 23 polegadas, mas ninguém entende que, na arte de escrever, tudo é mais acessível. Um pedreiro pode estar entendendo o som sem nem ter vitrola”, divaga Arnaldo, em suas costumeiras elaborações que ultrapassam o óbvio. 

Quando era criança e durante a puberdade, Arnaldo foi membro da Associação de Astrônomos Amadores de São Paulo (AAASP), e se demorava tardes inteiras no Planetário do Ibirapuera, estudando as estrelas com um telescópio, uma de suas fixações, para saber “o que tinha atrás da lua, além da compreensão do total”. “Consegui identificar algumas constelações, tipo Plêiades e Cruzeiro do Sul, mas não passei muito disso”. O ímpeto de descobrimento, no entanto, não se conteve, e desembocou nas invenções dos Mutantes. 

Mutantes e disco novo 

“A música tem coisas incríveis, e, dentro da eletrônica, a gente encontra uma profundidade estupenda”, afirma o músico. Ele relembra o caso do britânico Carl Holmes, colaborador dos Bee Gees, e que produziu o disco dos Mutantes gravado na Inglaterra, em 1970, que, de tão original para a época, foi engavetado pela gravadora e só veio à luz nos anos 2000, sob o título de “Tecnicolor”.

Na ocasião do encontro, Holmes contou para a trupe como criou uma novidade sonora de maneira despretensiosa e inusitada, graças a “um gravador que funcionava cambaleando, aí o efeito apareceu e ele patenteou”, revela Arnaldo. “A gente se inspirava nessas coisas”. 

Colocar um microfone dentro de uma caixa elétrica também rendeu aos Mutantes “um som todo revolucionário”, nas palavras do próprio Arnaldo. Outro caso é o do theremin – pioneiro dos instrumentos eletrônicos – usado por Rita Lee e seus comparsas na gravação de “2001”, parceria da ruiva com Tom Zé, que juntava no mesmo balaio futurismo e moda de viola, ao comentar a odisseia do “astronauta libertado” da letra. Arnaldo imita um som como um “u” prolongado ao tentar reproduzir o efeito do uso do instrumento. “Foi boa essa história de inventar”, orgulha-se. 

Atualmente, ele se dedica a um novo disco, à espera de patrocínio. “Eu já tinha o apoio, mas não deu certo, aconteceu um acidente de carro e o dinheiro sumiu”. O aguardado sucessor de “Let It Bed”, lançado há 20 anos, já tem nome e capa pintada pelo próprio músico.

“Esphera” está na fase de gravação de bateria e baixo por Arnaldo, que, quando assistiu a “O Mágico de Oz”, compreendeu que poderia “escrever sem precisar de botar frase, métrica, tudo”, envolvido pelo clima onírico deste mundo além do arco-íris. Essa liberdade ilimitada guia as invenções do mais lóki de todos os mutantes.

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