A “concha” está do lado de duas esculturas de Samico, um dos maiores expoentes da xilogravura brasileira, integrante do movimento armorial na década de 1970. A nova aquisição da atriz Vera Holtz foi recebida há duas semanas, durante a solenidade do Prêmio Shell, principal prêmio do teatro no país. A concha, símbolo da empresa petrolífera, também dá forma ao troféu que ela recebeu há duas semanas, por sua atuação em “Ficções”. 

Não é o primeiro – Vera tem outras duas “conchas”, guardadas em sua casa em Tatuí, no interior de São Paulo, cidade onde nasceu. “Já tenho uma história com o prêmio”, alerta a atriz, que titubeia ao tentar se lembrar das peças (“Um Certo Hamlet” e “Pérola”) e dos anos (1991 e 1995) que lhe possibilitaram os outros triunfos. “Você me pegou, teria que fazer um levantamento. Sou péssima com números e datas”, diverte-se. 

Depois de três meses em São Paulo, no teatro Faap, além de uma elogiada passagem pelo Festival de Curitiba, onde a peça teve ingressos esgotados, agora é a vez de Belo Horizonte conferir o premiado espetáculo baseado no best-seller “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, de Yuval Noah Harari. “Ficções” entra em cartaz no CCBB a partir de amanhã e fará minitemporada até 8 de maio, com apresentações de sexta a segunda. 

A pandemia a deixou de molho em casa por três anos, mas possivelmente, se não fosse a crise sanitária, ela não teria sido chamada pelo encenador Rodrigo Portella para participar de “Ficções”. Vera estava em Portugal, ladeada por Marcos Caruso, percorrendo o país com “Intimidade Indecente”, quando teve que interromper a turnê europeia devido ao coronavírus. “A pandemia parou a gente e me levou a reorganizar uma série de caminhos”, assinala. 

Aos 69 anos, com uma longa experiência em teatro, cinema e televisão, Vera Holtz revela que “Ficções” significou uma grata surpresa para ela. “Não pelo livro, que eu já conhecia e tinha indicado para algumas pessoas. Mas por aquilo em que ele se transformou no palco, uma obra potente, resultado de um longo trabalho de estudo de Rodrigo. A peça tem alguns pontos de ligação com o livro, mas a estrutura é totalmente fruto da inspiração dele”, garante. 

A começar, conta Vera, pelo fato de o encenador brasileiro ter buscado uma “sapiens fêmea” para costurar uma narrativa sobre a capacidade humana de criar e acreditar em ficções. “O homem inventa, e todo mundo acredita junto. São obras imaginárias como a nação, o dinheiro, as leis e as religiões. É a partir dessa ordem imaginária que o povo brasileiro pode sofrer junto pelo futebol, mesmo sem nos conhecermos”, destaca a atriz. 

Na versão brasuca, Vera se desdobra em vários personagens, alguns deles saídos do livro e outros criados por Portella. Ela canta, brinca, se dirige à plateia, se assume como narradora e também como a própria Vera Holtz. É um monólogo – e também não é. No palco, há a presença do músico Federico Puppi, com quem a atriz interage bastante. E também há o público. “É um monólogo até o momento em que entra o público”, afirma. 

Responsável também pela trilha sonora, Puppi sublinha que a plateia “entra como um sujeito ativo no espetáculo”. Antes do Festival de Curitiba, os realizadores gostavam de dizer que “Ficções” era um “working in progress”. “Ela já tem um formato definido. O que muda é a temperatura de algumas cenas, quando fazemos junto com a plateia”, pondera Vera. Puppi agora vê como uma “jam session” – assim como no jazz, há partes previamente destinadas à improvisação. 

O parceiro de Vera Holtz no palco prefere não dar muitos spoilers, mas adianta que os espectadores sairão do teatro com mais perguntas do que respostas. “É tudo muito amplo e cheio de curvas. Cada um pode tentar responder da forma que achar melhor sobre o caminho da humanidade”, analisa. “A peça é difícil de catalogar, mas podemos dizer que ela busca nos oferecer uma reflexão sobre a condição humana”, sintetiza Vera.

SERVIÇO

“Ficções” -  A partir de amanhã, com sessões de sexta a segunda, às 20h, no Teatro do CCBB (Praça da Liberdade, 450, Funcionários). Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada), à venda nas bilheterias do teatro e no site do CCBB