Roda da cultura

Cenário para trabalhadores da ‘graxa’ de BH tem desafios e esperança

Fundamental para o setor de eventos, categoria que atua nos bastidores das produções culturais sofreu com a pandemia

Por Bruno Mateus | @eubrunomateus
Publicado em 11 de dezembro de 2022 | 11:33
 
 
 
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Eles estão nos bastidores de shows, espetáculos de artes cênicas, mostras de cinema, festas corporativas, eventos culturais e esportivos de pequeno, médio ou grande porte. Sem eles, nada disso seria possível, inclusive – e não há nenhum exagero em tal afirmação. Por trás daquele grande festival de música, por exemplo, há uma equipe técnica que dá todas as condições para que ele aconteça.

São operadores e técnicos de som e de iluminação, roadies, carregadores, produtores, trabalhadores de montagem e desmontagem de palcos e estruturas, entre outras funções que fazem um evento girar. Esses profissionais fazem parte de uma categoria conhecida como “graxa”.

Se a cultura foi uma das áreas mais impactadas pela pandemia, com a proibição de shows, cancelamentos e adiamentos de diversas programações em todas as teias do setor, os profissionais da “graxa” viram os trabalhos minguarem e as remunerações caírem assustadoramente.

Após meses e meses de incertezas e angústias, a reabertura dos espaços culturais e a retomada dos grandes eventos viraram realidade e sinônimo de esperança para a classe. Ao mesmo tempo, a pandemia deixou marcas indeléveis. Agora, em meio a um cenário de desafios e expectativas, 2023 se aproxima e a “graxa” estará novamente para fazer tudo acontecer – resta saber sob quais condições.

Murillo Corrêa é técnico de som e empresário do ramo. Ele tem uma trajetória na “graxa” que remonta ao início dos anos 1970. Na fase mais dura da pandemia, a empresa administrada por ele ficou fechada, como tantas outras, mas Corrêa conseguiu realizar alguns projetos em Minas e em outros estados.

Lives e trabalhos de mixagem de música trouxeram alívio e alento, mas ao falar sobre a situação de vários colegas, o técnico de som revela um cenário terrível: “No geral, foi uma porrada para a classe. Muita gente mudou de ramo, começou a fazer pizza em casa ou virou uber para ganhar dinheiro. Foi um horror, mas todo mundo começou a se virar como pôde. A prestação de serviço na cultura sofreu de sangrar. Muitos amigos e colegas passaram fome. E agora, com a retomada, nosso cachê diminuiu absurdamente”.

Produtora cultural e uma das gestoras do Salve a Graxa – surgido inicialmente como uma campanha de socorro aos trabalhadores da área e, agora, consolidado como um movimento que tenta mobilizar a classe ao mesmo tempo em que busca diálogo com profissionais de outros estados –, Renata Almeida ressalta  que para falar de retomada e ponderar sobre o futuro a curto prazo é necessário lembrar o quão tenebroso foi o auge pandêmico para a cultura e a esmagadora maioria da “graxa”: “As pessoas não tinham o que comer em casa, essas famílias tiveram que se reinventar. A parada foi tão assustadora que a gente doava cesta básica, mas quem recebia não tinha dinheiro para comprar gás”.

As lives jamais deram conta de segurar todas as pontas do setor. Sem palco, não há montagem, carregadores, iluminação, roadie e um sistema de som mais robusto; sem tudo isso, perdem os trabalhadores. Com a pandemia, sem uma renda fixa, muitos profissionais autônomos tiveram de migrar para outros setores. Eles foram, segundo a produtora, os mais impactados pelo isolamento. Só o retorno da agenda de eventos não foi suficiente para melhorar o cenário da “graxa” em BH.

“Perdemos muitos profissionais com experiência, já que saíram do mercado e muitos não voltaram. Muitos contratantes preferem pagar profissionais inexperientes, porque são mais baratos. O que encontramos foi uma situação muito ruim. Os custos aumentaram, as pessoas estão trabalhando mais e ganhando menos. Se os homens foram impactados, imagina as mulheres”, reflete Renata Almeida.

Como grande parte dos trabalhadores da “graxa” não têm vínculo empregatício regido pela CLT, é difícil estimar quantos são os profissionais que exercem as diversas funções neste mercado. “Só o Salve a Graxa conseguiu mapear mais de dois mil profissionais em BH, mas pode triplicar, ou até mais. É muita gente, se forem 10 mil eu não me surpreenderia. Queremos chamar atenção para isso também. Não temos um número específico, mas sabemos que são milhares”, ela aposta.

A entidade que representa a classe é o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado de Minas Gerais (Sated-MG). A reportagem não havia conseguido contato com a instituição na sexta-feira (9). Na manhã desta segunda (12), a atriz e presidente do Sated, Magdalena Rodrigues, conversou com O TEMPO.

Ela lembra que a entidade se mobilizou durante a pandemia para mitigar as consequências da Covid-19. Foram, de acordo com ela, quase cinco mil cestas básicas distribuídas aos trabalhadores defendidos pela instituição. Magdalena diz que o Sated está realizando reuniões para a elaboração de uma convenção coletiva da área técnica que abrangeria todo o Estado e organizaria as relações de trabalho no setor, como a questão de cachês e carga-horária. “Estamos trabalhando nesse sentido e no início de 2023 vamos partir para as assembleias”, ela comenta.

Magdalena destaca que a atividade artística está intimamente ligada à área técnica e é “impossível dissociar uma coisa da outra”. O sindicato, segundo a dirigente, está aberto ao diálogo e às reivindicações da categoria.

Perspectivas para 2023

A informalidade e a invisibilidade são dois grandes problemas apontados pela produtora. O Salve a Graxa, a partir de 2023, quer mostrar aos profissionais do setor que educação financeira, capacitação, formalização e apoio do poder público são fundamentais para construir uma categoria forte e consciente de seus direitos.

“A informalidade é um problema da classe. Além disso, os cachês de hoje são mais baixos que os que eram pagos antes da pandemia ou os mesmos, mas com as pessoas trabalhando mais. Tirar o profissional da invisibilidade é nosso principal foco”, observa Renata, que ao conversar com produtores de outros estados viu que vencer essa barreira não é uma batalha exclusiva da capital mineira.

“O que nós pleiteamos enquanto categoria são políticas públicas voltadas para essas pessoas, que são excluídas do mercado. O que as grandes produtoras propõem para mudar a realidade delas? Por que o profissional da ‘graxa’ não está na conta?”, questiona a produtora.

“A classe sempre foi cheia de problemas. A cultura sofreu muito e nosso setor ficou abandonado na pandemia. A esperança é a última que morre, espero não morrer antes de a coisa mudar”, completa Murillo Corrêa.

O produtor Marco Antônio Magalhães Otoni, conhecido no mercado como Ratho, tem uma empresa de aluguel de equipamentos e instrumentos para eventos. Ele sentiu o baque da pandemia, mas espera que o “boom” de shows e festivais em BH se mantenha em 2023. A Copa do Mundo, as festas de fim de ano e eventos corporativos também ajudam a melhorar o ânimo e o faturamento. Por outro lado, uma programação cultural recheada demanda mão de obra.

“Se mantiver o padrão da reabertura, com muitos eventos, vamos ter muitas dificuldades em algum momento. Vários trabalhadores da nossa área não querem voltar. Estou com uma dificuldade gigante de conseguir profissionais, principalmente carregadores”, ele pontua. O músico e técnico de som Lucas Mortimer é outro a perceber essa escassez de profissionais no mercado da “graxa” em um cenário efervescente, com tantos eventos sendo realizados de uma só vez.

“Até chegou a faltar mão de obra qualificada para atender tanta demanda”, comenta. Mortimer, que forma o duo Confeitaria ao lado de Gabriel Murilo, no entanto vê a retomada dos trabalhos como positiva, o que não o impede de fazer ressalvas quanto ao pagamento dos cachês, por exemplo.

O técnico de som diz que a remuneração de um profissional da área pode variar 500%, de R$ 250 a R$ 1.250 (valor pago a uma minoria) por uma diária que também pode flutuar de 8h a 12h, 15h. Os salários, ele acrescenta, estão defasados.

Lucas Mortimer avalia que as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc II, se forem aprovadas no Congresso e saírem do papel, chegarão em ótimo momento para a “graxa”: “Se tudo der certo, vai ser um grande respiro e um bom ano para a produção e a movimentação do setor”.

Série no YouTube mostra realidade de profissionais da “graxa”

Poder mostrar e registar o cotidiano das pessoas que trabalham na área técnica de eventos, como montadores, operadores de som, de luz e de painéis, roadies, carregadores e produtores técnicos, que cuidam de toda a parafernália necessária para colocar um show de pé, era o objetivo do técnico de som Cahue Teixeira quando a série online “TV Técnica” foi idealizada por ele, que também desejava jogar luz na trajetória de personagens icônicos da “graxa” de BH.

Adriano “Gaguinho” Vale, Crispim José Carneiro, o Mr. Pingo, Washington Galeno, o Chitão, e Murillo Corrêa são os personagens dos quatro episódios, de cerca de 15 minutos cada, que fazem parte da primeira temporada do projeto. O material está disponível no canal da “TV Técnica” no YouTube. Teixeira busca patrocínio para a realização de uma segunda leva de capítulos.

“Quero conversar com as pessoas que trabalham em teatros da cidade, que fazem coberturas de transmissões de futebol. Além de valorizar e mostrar quem são essas pessoas, a ideia é mostrar o que eles fazem, como o trabalho é desenvolvido e é importante dentro de um meio que fica em segundo plano muitas vezes”, afirma Cahue.

Ele diz que a quantidade de atividades culturais em 2023 será um pouco menor se comparada a este ano, mas ressalta que, ainda assim, BH viverá um bom momento: “Ainda vai ter bastante trabalho. A agenda de eventos na cidade já está bem cheia, tem muitos festivais em Belo Horizonte. Dá para todo mundo ficar bastante ocupado”.

 

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