Deitado confortavelmente na rede do apartamento do filho Donatinho, enquanto olha o céu nublado de uma tarde fria na cidade de São Paulo, João Donato, 87, termina a chamada de vídeo com um pedido: “Quero que você fale só uma coisa com o Macalé: constrangedor!”, e encerra a entrevista com uma gargalhada. Jards Macalé, 78, atende o telefone. Ele está no sítio em Itatiaia, na região serrana do Rio de Janeiro, com a mulher, Rejane. Ao saber do recado de Donato, solta uma longa gargalhada. “Isso acabou virando piada entre a gente. Constrangedor!”, e ri novamente.

Cabe explicar. Dois dos grandes nomes da música popular brasileira, Donato e Macalé acabam de lançar “Síntese do Lance”, primeira parceria fonográfica da dupla. Na capa do disco, eles estão nus, peitos ao vento, cobertos por grandes folhas. Jards Macalé brinca que é um nude para o disco. Na sessão de fotos, um sempre repetia para o outro, em tom de gozação: “Constrangedor!”. 

João Donato e Jards Macalé se admiram de longe há décadas. “Síntese do Lance” marca o primeiro encontro dos músicos em um álbum. A ideia de reunir a dupla foi da gravadora Rocinante, que levou os dois para o estúdio que tem em Araras, distrito de Petrópolis, no Rio. Lá, Donato e Macalé passaram pouco mais de uma semana finalizando o disco. As músicas já estavam mais ou menos amarradas, e a tranquilidade do lugar, onde quase não tem passarinho, como lembra Donato, foi a atmosfera perfeita.

“A gente saía para trabalhar de manhã e ficava até a noite. Música tem que ter energia boa”, conta Donato, que prossegue: “Foi uma delícia trabalhar com o Macalé. Fomos nos divertindo, gravando e nos tornando mais amigos e companheiros”. 

Para Macalé, “Síntese do Lance” tem um significado muito especial. O compositor diz que o disco o fez voltar aos 17 anos, “quando comecei a me interessar verdadeiramente por música”. Naquele tempo, e estamos falando da primeira metade dos anos 1960, quem fazia a cabeça dele era um quarteto de “J”: Johnny Alf, João Gilberto, Jobim e João Donato. “Foram esses quatro que me embalaram nesse período”, comenta. “Foram influências muito fortes do que eu tento fazer na música”, completa, em tom de reverência. 

O disco

Lançada como single no primeiro dia de outubro, “Côco Táxi” é a única parceria da dupla em “Síntese do Lance”, produzido por Marlon Sette, Sylvio Fraga e Pepê Monnerat, sócios da Rocinante. As outras nove faixas nasceram individualmente e são temas instrumentais ou parcerias com Fraga, Sette, Ronaldo Bastos e Joyce Moreno. Bastos e Macalé inauguram a parceria com a delicada “O Amor Vem da Paz”, declaração do violonista a Rejane Zilles, sua companheira há dez anos; com Joyce, surgiu “Um Abraço do João”, homenagem a João Gilberto.

“João Duke” celebra o jazzista Duke Ellington e o parceiro. “Acho que o João tem muita coisa do Duke, a economia e a precisão dos temas”, comenta Macalé. Todas elas têm o suingue e a fineza do piano de João Donato, que traz a ótima e bossa-novista “Açafrão” e a impregnada de latinidade “Dona Castorina”, composta para Ivone Belém, com quem está casado há 22 anos. 

“Côco Táxi” traz um balanço caribenho ao fazer graça sobre o mambembe meio de transporte usado por turistas nas ruas de Havana, em Cuba. Em diferentes viagens à ilha, Donato, autor da melodia, e Jards, responsável pela letra, andaram no folclórico triciclo paramentado com um grande coco. “O carrinho é um barato, parece que vai virar nas curvas, só tem três rodas. Eu gostaria de ir mais uma vez a Cuba. O povo de lá é uma alegria só, cantam o tempo todo. Acho que eles levam a vida só na flauta, como se diz”, comenta Donato.

“Ele me mandou a melodia quase como um desafio de brincadeira, tinha só um refrão ‘côco táxi, côco louco’”, lembra Jards, que costurou alguns versos: “É nesse balanço doido que eu fico louco/ Côco de lá, côco de cá/ Tudo que vivo e sinto me deixa louco/ Azuis do céu, águas do mar/ É nesse molejo bom que eu fico louco”. 

De João Donato e Marlon Sette, a faixa que dá nome ao álbum é a adaptação de um ponto de umbanda, um samba recheado de cuíca, e nasceu a partir de anotações antigas de Donato. Em um caderno da época de seus 17, 18 anos – “quando somos indomáveis, depois a gente vai arrefecendo, ficando mais cauteloso” –, ele encontrou rascunhos e o título “Síntese do Lance”. “Na mesma hora me veio a vontade de dar nome a essa página. Gosto das músicas que eles tocam nesses rituais”, ele conta. “Síntese do lance: é o resumo da ópera, o frigir dos ovos, o resumo da coisa”, completa.

“O lance somos nós nos encontrando, é a feitura do trabalho em si. E a síntese do lance foi o que a gente conseguiu fazer ali, sintetizar nossas experiências, ir direto ao ponto, mas cada um no seu lance”, explica Macalé, que uniu seu violão ao piano do parceiro.  

“Síntese do Lance”, no fim das contas, faz um grande favor à música brasileira ao reunir Jards Macalé e João Donato, que trazem para o álbum malandragem, juventude, frescor e aquela alegria de dois homens nus. E, como eles dizem, é representativo que o lançamento ocorra agora, nestes dias tão estranhos. A música, afinal, é um bálsamo, lembra Donato, que fala do disco com tanto carinho: “Música eleva nosso espírito, nossa alma. Foi feita para isso, e esse álbum é das melhores coisas que eu já fiz. É o recente, o pãozinho mais quente, o mais gostosinho, o que eu gosto mais”.

Para Macalé, “Síntese do Lance” chega para apaziguar sentimentos e angústias, mas sem alienação: “É um momento de tréguas nesta história, um momento de alegria, de mais relaxamento, mas estando atento a tudo que está acontecendo em volta”. 

“Síntese do Lance”

Com dez faixas inéditas, o álbum, lançado pela gravadora Rocinante, chegou na última sexta (22) às plataformas digitais e, no fim do ano, ganha edição em vinil.