Geraldo Azevedo vivia o seu próprio inferno na década de 1970. Preso pela ditadura militar ao lado da esposa, grávida de seu segundo filho, ele só parou de ser fisicamente torturado quando os agentes do regime o obrigaram a cantar e tocar violão. Depois de solto, o músico recebeu um convite que mudaria sua vida.
Agora, era a vez de narrar a pendenga com o capeta de um dos mais folclóricos personagens nacionais. Convidado pelo diretor Luiz Mendonça (1931-1995), o pernambucano realizou a direção musical da peça “Lampião no Inferno”, baseada em quatro folhetos de cordel, que estreou em 1975.
Foi quando conheceu Elba Ramalho, com quem divide o palco nesta quarta (13), em apresentação única do espetáculo “Um Encontro Inesquecível”, de volta a BH após dez anos, na abertura da nova edição do projeto Mesa Brasil Musical, iniciativa do Sesc que alia a cultura na luta contra a fome.
“Nos tornamos amigos desde o primeiro momento em que nos conhecemos”, conta Elba, que, naquela montagem, ainda atuando como atriz, dava voz a “Trepadeira”, música de Azevedo feita para a diabinha interpretada por Tânia Alves.
No elenco, também estavam Joel Barcelos, Imara Reis, Tonico Pereira e a lendária transformista Madame Satã, de quem, para complementar a renda, Elba vendia livros na época, sobre a agitada trajetória de um malandro da Lapa.
Amizade
Migrantes no Rio de Janeiro, a dupla de nordestinos – Elba de Conceição, na Paraíba; Azevedo de Petrolina – decidiu dividir um apartamento. “Verdadeiramente, dividimos nossas vidas. A amizade deu frutos em forma de canções e muitas parcerias musicais. Somos compadres e dividir o palco com Geraldo é sempre maravilhoso”, enaltece Elba. Azevedo devolve o elogio: “Foi um tempo muito bom. Elba é a intérprete que mais gravou composições minhas. Esse encontro no palco representa a nossa amizade, sempre permeada pela música”.
Em 1996, no primeiro volume de “O Grande Encontro”, Elba gravou sua versão para “Dia Branco”, lançada por Amelinha. A romântica canção se tornou símbolo de matrimônios, a ponto de o próprio autor cantá-la em cerimônias. “Me sinto realizado por abençoar muitos casais através da minha música. Há umas semanas, cantei pessoalmente em um desses casamentos e foi uma emoção incrível. Me sinto muito feliz de ver ‘Dia Braco’ atravessar gerações e seguir tão atual”, confirma Azevedo.
Repertório
Outro sucesso garantido no repertório é “Bicho de Sete Cabeças II”, parceria tripla de Azevedo com Zé Ramalho e Renato Rocha, que nasceu como instrumental. Já com letra, ganhou um dueto de Azevedo e Elba, em 1979. Posteriormente, entrou para a trilha do filme homônimo, em 2001, protagonizado por Rodrigo Santoro, o que, de acordo com Azevedo, contribuiu para que ela alcançasse uma nova geração de fãs. “Acredito que a melodia seja o grande diferencial dessa música”, opina o compositor.
Irresistível na mesma medida, mas com o ritmo da toada, “De Volta pro Aconchego”, definida como “uma música primorosa”, teve o toque decisivo de Elba, para além da interpretação. Enviada para a cantora em forma de baião, a música foi alterada por Dominguinhos após ele ouvir de Elba que o andamento rápido não combinava com o clima romântico da narrativa, mais propícia a uma abordagem dolente. Com arranjo de Dori Caymmi e letra de Nando Cordel, a canção foi lançada em 1985, e se tornou tema de José Wilker (1944-2014) na novela “Roque Santeiro”.
Atemporal
“A música tem esse poder, de atravessar gerações e permanecer em nossas memórias afetivas”, avalia Elba, que reputa Dominguinhos e Nando Cordel como “dois compositores da maior importância na minha vida”, de quem já gravou dezenas de composições.
“Como intérprete, eu tenho a missão de escolher aquela composição que realmente me cabe cantar. Aquela música em que eu vou contar uma história, com a qual eu vou tocar os corações”, completa. Imbuída desse espírito, ela colocou na praça, em dezembro, o videoclipe “Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor”, em que entoa o hit dos irmãos Márcio e Lô Borges, com participação de Wilson Sideral.
“Eu sou apaixonada por essa música e foi uma ousadia interpretar uma canção imortalizada pelo Milton Nascimento. O mineiro é um povo muito acolhedor, assim como os compositores mineiros. Sou apaixonada pela obra de Lô Borges, Milton, Flávio Venturini, Beto Guedes, Samuel Rosa, Rogério Flausino, Wilson Sideral. É uma poesia urbana que me encanta”, afiança Elba.
A faixa deve integrar o seu novo álbum, previsto para este ano. Com produção de seu filho, Luã, o lançamento vai contemplar duetos com Zé Ramalho, Juliette, Almério, uma inédita de Renato Teixeira, e “Enquanto Engoma a Calça”, clássico de Ednardo e Climério Ferreira.
Celebração
“Os tempos mudaram, a forma de gravar mudou, as estratégias de lançamento pretendem alcançar um público cada vez maior, mas o meu compromisso é comigo mesma”, garante Elba. Geraldo Azevedo exalta a independência desse novo momento da música brasileira.
“Eu fui um dos primeiros artistas a ser independente, ainda nos anos 1980. Era uma dificuldade muito grande. Hoje, cada vez mais, as novas gerações conseguem produzir e comercializar sua música, graças à tecnologia”, comemora. O músico estreou no mercado fonográfico em 1972, dividindo um LP com Alceu Valença.
Nos anos 1990, Alceu, Azevedo, Elba e Zé Ramalho perpetuaram o icônico disco “O Grande Encontro”. Essa característica de comunhão seria uma constante na carreira de Elba, que permanece. “Gosto de dividir o palco, gosto de dividir as canções, de fazer duetos e buscar parcerias inusitadas”, observa a paraibana.
Em 2025, Azevedo, que completa 80 anos, promete um álbum para celebrar a efeméride. Certamente, com a presença da amiga de longa data. Pois, como diz o sucesso “Caravana”: “Corra, não pare, não pense demais/ Repare essas velas no cais/ Que a vida é cigana…”.
Mesa Brasil Musical
De acordo com Priscilla D’Agostini, gerente do Sesc Palladium, estão previstas, para 2024, ao menos mais três edições do projeto Mesa Brasil Musical, em maio, agosto e outubro. As atrações são anunciadas 20 dias antes dos shows, e a retirada de ingressos é gratuita, mediante a doação de alimentos, já que a iniciativa atua no combate à fome e ao desperdício. Em 2023, o Sesc Mesa Brasil arrecadou, em Minas Gerais, cerca de 9 milhões de quilos de alimentos, que foram distribuídos a 1.700 entidades sociais, beneficiando mais de um milhão de pessoas.
Serviço.
O quê. Mesa Brasil Musical com Elba Ramalho e Geraldo Azevedo em “Um Encontro Inesquecível”
Quando. Nesta quarta (13), às 20h30
Onde. Grande Teatro Sesc Palladium (rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro)
Quanto. Ingressos esgotados