(Texto livremente baseado em fatos surreais)

O mundo ficou perplexo e desapontado quando soube pelos jornais que os Beatles haviam chegado ao fim. Não sei o que passa pela cabeça dos fãs para acharem que os artistas são seus bonequinhos e devem sangrar por mais um sucesso até eles se cansarem e procurarem outro ídolo qualquer. Para mim, que vi perto a coisa toda ruir, se esfarelar como um castelinho de areia, aquela separação era nada mais que um alívio para quatro caras que mal acabavam de chegar aos 30 anos e tinham o mundo nas mãos.

Naquele 10 abril de 1970, uma sexta-feira como a de hoje, acordei no sofá do meu pequeno apartamento em Liverpool em meio aos livros que não havia lido na noite anterior - um deles era “Tarântula”, aquela ficção estranha que Dylan lançou em 1966. Saí para tomar café e ouvi comentários. “Paul falou que já era, os Beatles chegaram ao fim!”, escutei um senhor falar na porta de uma barbearia em Penny Lane, perto de onde eu morava.

A verdade é que Ringo, Paul, George e John começaram a se separar em 1968 nas gravações do “Álbum Branco” e romperam de vez no ano seguinte. Ironicamente, se foram à Índia buscando paz, autoconhecimento e um mergulho na meditação transcendental, o que encontraram depois da viagem foram cicatrizes abertas, desordens nas relações e um ambiente hostil, em que um não suportava mais olhar para a cara do outro. 

A manchete do jornal era apenas o anúncio oficial - e uma genial jogada de marketing de Paul, que lançaria, uma semana depois, seu primeiro disco solo, “McCartney”. John ficou puto. “Quem ele pensa que é para anunciar o fim da banda que eu criei?”, me questionou ao telefone.

Em setembro de 1969, Lennon já havia comunicado ao grupo que deixaria a banda, mas foi convencido por Paul a não fazê-lo publicamente, já que “Abbey Road” seria lançado no mesmo mês. Ringo me confessou depois que adorou a ideia de John: “Sabíamos que era uma boa decisão, ainda que o rompimento fosse algo traumático”. Ter tocado no Toronto Peace Festival com a Plastic Ono Band (Eric Clapton, Klaus Voormann e Yoko) naquele mesmo setembro foi libertador para John. “Eu amo aqueles caras, mas estou cansado. Não aguento mais ser um beatle”, ele me disse certa vez em sua casa enquanto tomávamos café.

Escute "Abbey Road", último álbum gravado pelos Beatles:

Mas Lennon não foi o único a deixar a banda. Ringo já havia feito isso por algumas semanas em 1968. George também não aguentava mais ser limitado pela dupla Lennon-McCartney (principalmente por este último) e deixou a banda por alguns dias. Paul e eu já conversamos a respeito: “Penso que eles achavam que eu estava sendo muito dominador”. Acompanhei as gravações de “Let it Be”, que saiu em maio, depois do estardalhaço do fim, e foi simplesmente constrangedor. Eu pensava: como eles ainda conseguem criar algo bom se brigam e se odeiam tanto? Aquilo era um inferno.

E não me venham com aquele papo estúpido - e machista - de que a culpa é da Yoko, como se ela fosse capaz de separar quatro marmanjos que tomavam suas próprias decisões. A banda acabou por desgastes pessoais, questões judiciais, brigas pela escolha do novo empresário (a famosa queda de braço entre John, George e Ringo, que queriam Allen Klein no comando, versus Paul, que optara por defender Lee Eastman, pai de Linda, para o cargo) e um natural sentimento de querer seguir em frente com projetos próprios.

Por isso, ao ler o jornal, fiquei aliviado e feliz por eles - quatro amigos que se amavam de verdade, que trabalharam duro para chegar aonde chegaram, mas estavam esgotados daquela viagem. Em junho de 70, estive nos bastidores da gravação de “All Things Must Pass”, primeiro trabalho solo de George após a separaçao. Ele me recebeu com um abraço. Perguntei como iam as coisas, ele apenas sorriu. “Quando penso em tudo aquilo não consigo ter a saudade que as pessoas têm. Foi só uma fase, e foi bom. Apenas isso”, falou.

Em dezembro daquele mesmo 1970, me encontrei com John pela última vez. Ele havia lançado “John Lennon/Plastic Ono Band” e estava especialmente tenso nesse dia - não sei se paranoico, culpado ou apenas ressentido. Dei-lhe um abraço e, antes de deixar o portão de sua imensa casa na pequena Ascot, na Inglaterra, ele arrematou nosso papo: "Foi um sonho, só isso. E eu não acredito mais no sonho. O que mais eu posso dizer?”. 

Ouça "Lei it Be", último disco lançado pela banda, em maio de 1970, um mês após o anúncio da separação: