Um dos maiores centros de arte contemporânea do mundo e o maior museu a céu aberto da América Latina, o Instituto Inhotim abre neste sábado (23) duas novas exposições temporárias que celebram a diversidade e a potência da produção artística negra no Brasil. Tratam-se das mostras “Fazer o moderno, construir o contemporâneo”, dedicada ao artista baiano Rubem Valentim, e “Direito à forma”, que reúne mais de 30 artistas negros que exploram diferentes formas de expressão. Ambas integram o Programa Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra, iniciado em 2021.
Rubem Valentim e outros diálogos
A exposição “Fazer o moderno, construir o contemporâneo” ocupa a Galeria Fonte e apresenta cerca de 50 obras de Rubem Valentim (1922-1991), um dos pioneiros da arte concreta no Brasil. As pinturas, esculturas e relevos do artista dialogam com as tradições afro-brasileiras e os símbolos da cultura popular, criando uma linguagem geométrica e abstrata que expressa sua identidade negra.
Em vizinhança às obras do artista homenageado, são incorporados trabalhos de outros nomes de relevo das artes visuais como Mestre Didi, Rosana Paulino, Emanoel Araujo, Jaime Lauriano, Rebeca Carapiá, Allan Weber, Bené Fonteles, Rubiane Maia, Froiid e Jorge dos Anjos – os dois últimos, que são mineiros, exibem obras comissionadas, isto é, criadas especificamente a pedido do Inhotim. No caso, Froiid apresenta uma instalação composta por 25 quadros cuja disposição é alterada diariamente, enquanto Jorge dos Anjos traz duas esculturas em aço, sendo que uma delas fica no espaço da galeria e a outra em área externa.
Froiid detalha que, na mostra, ele expõe a obra “Boi de Piranha”, que explora a relação entre a arte e as tradições populares – neste caso, o jogo do bicho. Vale registrar que outras exposições e trabalhos seus também têm nomes referentes a expressões populares, como “Hora da Onça Beber Água”, “Sapo de Fora Não Ronca”, “Onde a Coruja Dorme”, entre outras. Ele explica que, na obra comissionada, o seu interesse era reunir alguns elementos que lhe interessavam, como a tradição construtivista, presente na arte contemporânea brasileira, e o popular, com elementos e estéticas presentes no dia a dia, como a tipografia vernacular – aquela típica de parachoque de caminhões e de placas promocionais de hortifrútis.
“Esse trabalho também se preocupa em dialogar com a origem do jogo do bicho, que começou em um zoológico do Rio de Janeiro, que estava falindo e daí criou uma nova dinâmica: um jogo com 25 pinturas a óleo de animais, que eram sorteadas no final do dia. Depois, essa prática se torna uma loteria popular, que vai ser criminalizada pela lei de vadiagem e acaba indo para um contexto marginal, comandado por famílias do crime organizado. Com esse trabalho, retomo essa ligação original do jogo do bicho, que existe há mais de 100 anos, com a pintura”, contextualiza.
Propósito
Para Júlia Rebouças, diretora artística do Inhotim, a produção de obras como as que foram entregues por Froiid e Jorge dos Anjos, feitas para o instituto, estão alinhadas com um objetivo caro ao museu: “A retomada da aquisição de obras comissionadas, mantendo um olhar para artistas da sociedade que estão agenciando narrativas sobre o presente, interessando as pessoas conectadas ao nosso tempo”.
A múltipla forma da arte negra
Já a exposição “Direito à forma” ocupa a Galeria Lago e reúne obras de mais de 30 artistas negros que exploram diferentes formas de expressão, como pintura, fotografia, vídeo, instalação, performance e poesia. A mostra propõe uma reflexão sobre as questões raciais, sociais e políticas que atravessam a história e a atualidade do Brasil.
Sobre integrar a mostra com outros 29 artistas, a artista plástica, dançarina e performer Luana Vitra diz se sentir feliz e acolhida por estar ao lado de artistas e curadores cujo trabalho ela reconhece e admira.
“São pessoas do meu convívio, que me ajudaram em momentos de reflexão sobre o meu trabalho e sobre a arte. É sempre muito especial quando esses encontros acontecem, quando eu posso partilhar desses momentos de celebração e entrega”, garante, dizendo tratar-se de pessoas que partilham de um campo de reflexão comum, sendo interessante ver como, a partir das suas diferenças e dos pontos de vista que têm em comum, eles produzem trabalhos artísticos tão distintos entre si – “que vão criando um universo que permite navegar por tantos pontos de percepção, que se conectam, mas que mais do que isso abrem a possibilidade de ampliação de mundos”, analisa.
Luana ainda aponta que os trabalhos que estão ali abrem espaço para a inauguração de universos e universos. “E isso é muito especial, ver como o trabalho cria o seu próprio mundo, mas, ao mesmo tempo, se comunica com um mundo comum dos outros”, conclui.
Além dela, integram a mostra artistas consagrados, como Emanoel Araujo, Eneida Sanches, Igshaan Adams, Lucia Laguna, Mestre Didi, Rubem Valentim, Sônia Gomes, e outros nomes proeminentes das artes visuais, como André Vargas, Antonio Tarsis, Ayrson Heráclito, Ana Cláudia Almeida, André Ricardo, Castiel Vitorino Brasileiro, Cipriano, Edival Ramosa, Edu Silva, Iagor Peres, Isa do Rosário, Jabulani Dhlamini, Juliana dos Santos, Marcel Diogo, M0XC4, Mulambö, Rommulo Vieira Conceição, Siwaju Lima, Raquel Gerber, Rebeca Carapiá, Tadáskía, Thiago Costa e Yhuri Cruz.
Polissemia afrodiaspórica
Um dos curadores das novas mostras, ao lado de Lucas Menezes e Deri Andrade, o professor assistente de história, teoria e crítica da arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Igor Simões, em uma apresentação à imprensa realizada nesta sexta-feira (22), destacou que as novidades chegam em momento oportuno, colocando em xeque a ideia de que existe uma única forma de arte negra, e mostrando que os artistas negros podem explorar diferentes linguagens, técnicas e temas, inclusive abstratos ou que não se relacionam diretamente com a questão racial.
“As exposições celebram a diversidade de formas de expressão dos artistas negros, que incluem pintura, fotografia, vídeo, instalação, performance e poesia”, assinala, ressaltando que os artistas negros também investigam questões formais, como a tridimensionalidade na pintura, e não apenas questões sociais ou identitárias.
O curador acrescenta que a iniciativa reconhece e valoriza a produção afro-brasileira como parte essencial da arte brasileira, e não como uma tendência recente ou passageira – e, nesse contexto, critica as frases que tentam reduzir ou limitar a importância da arte negra no país, como “nos últimos anos”, “em tempos recentes” ou “a onda da arte negra”.
Por fim, Simões observa ainda que as duas mostras têm como elo uma reflexão política sobre como a arte afro-brasileira dialoga com outras experiências artísticas do Atlântico Negro – ou seja, do conjunto de culturas e histórias afetadas pela diáspora africana, de maneira que os artistas negros brasileiros estão conectados com os movimentos globais de arte e política, e não apenas com o contexto nacional.
Programa Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra
As duas exposições fazem parte do Programa Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra, uma iniciativa do Inhotim que homenageia o ativista, artista e intelectual Abdias Nascimento (1914-2011), um dos principais nomes do movimento negro no Brasil. O programa visa ampliar a visibilidade e o reconhecimento da arte negra no país, além de promover o debate sobre as questões raciais na sociedade brasileira. As mostras ficarão em cartaz até o próximo ano.
Números
Paula Azevedo, diretora vice-presidente do Inhotim, informa que o instituto deve chegar, em outubro, à marca de 4 milhões de visitantes. “Este é um ano importante para nós, que estamos experimentando um crescimento expressivo de público. A expectativa é que o número de pessoas visitando o museu seja superior a 300 mil, um aumento de 35% em relação ao ano passado”, assinala.
Ela lembra que, com a ampliação da gratuidade (atualmente, nas quartas-feiras e último domingo de cada mês), houve também o aumento do número desses visitantes. “Esse crescimento, considerando o primeiro semestre de 2023 em relação ao de 2022, foi de 160%, o que está muito afinado com nossos objetivos de democratização do acesso à arte”, assegura, complementando que, entre os visitantes mineiros, a taxa de retorno é expressiva, chegando a 60%.
SERVIÇO
O quê. Abertura das mostras "Fazer o moderno, construir o contemporâneo" e "Direito à forma"
Quando. Neste sábado (23). Visitação de terça a sexta-feira, das 9h30 às 16h30, e aos sábados, domingos e feriados, das 9h30 às 17h30.
Onde. Galerias Fonte e Lago no Instituto Inhotim (rua B, 20 Fazenda Inhotim, Brumadinho)
Quanto. A partir de R$ 25 (meia entrada). Crianças até 5 anos não pagam. Visitação gratuita às quartas-feiras e no último domingo de cada mês.