A área soma cerca de 1.500 m² e inclui, além de um jardim baixo com 4.000 bromélias e outras centenas de espécies vegetais multicoloridas, um imponente e surpreendentemente discreto paredão férreo cuja estrutura, quase monolítica, esconde duas instalações imersivas criadas pela japonesa Yayoi Kusama – artista que tem como marca registrada o uso de padrões repetitivos em suas obras, incluindo as psicodélicas e famosas bolinhas coloridas, com a intenção de convocar o espectador a um ato radical de abolição da própria individualidade para, então, se integrar ao todo, mas que, a depender da pessoa, pode representar também um simples convite às selfies.
De forma muito resumida, é com essa imagem que o visitante do Inhotim se depara a partir deste domingo, 16, quando o instituto localizado em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), inaugura o seu vigésimo pavilhão, a Galeria Yayoi Kusama, inteiramente dedicado a abrigar as instalações I'm Here, But Nothing (Estou aqui, mas nada) e Aftermath of Obliteration of Eternity (Consequência da obliteração da eternidade), adquiridas em 2008 e 2009, respectivamente.
O novo pavilhão fica localizado no Eixo Laranja do instituto, próxima à Cosmococa, de Helio Oiticica e Neville D’Almeida, e ao Jardim Veredas. E a escolha do espaço, garante Allan Schwartzman, cofundador do Inhotim, não se deu por mero acaso. “Todo o complexo é pensado para potencializar a experiência dos visitantes”, avaliza, asseverando que a Galeria Yayoi Kusama traz para o lugar um potencial sensorial com um quê de inédito à medida que propõe uma experiência de materialidade completamente diferente daquelas encontradas em outros pavilhões individuais, diz, referindo-se a um conceito basilar da obra de Kusama: o da auto-obliteração, ideia que pode ser interpretada como um movimento de transcendência da própria individualidade frente ao infinito, ou ao vazio, sendo perseguida nos trabalhos da artista por meio de utilização de padrões repetitivos e pontos, que geram uma sensação de expansão e dissolução do “eu”.
As instalações
Em I'm Here, But Nothing, do ano 2000, Kusama convida o público a entrar em uma sala de uma casa comum, mas iluminada por luz negra e salpicada por cerca de 10 mil pontos brilhantes coloridos – que nos convoca a integrar aquele universo a partir da desintegração do “eu”. Os padrões repetitivos, por sinal, marcam a trajetória da artista e estão presentes até mesmo em desenhos feitos quando ela ainda era criança – quando sua condição neurodivergente começou a ser manifesta por alucinações envolvendo pontos e círculos. Foi em uma performance realizada em 1967, durante a apresentação do filme Kusama's Self-Obliteration (Auto-obliteração de Kusama), que ela, pela primeira vez, usou tinta e lâmpada fluorescentes para tornar visível aos outros a sua percepção de mundo.
Já em Aftermath of Obliteration of Eternity, de 2009, a proposta é que o espectador, ao adentrar em um pequeno espaço imersivo projetado para experiências individuais (embora seja possível fazer a visitação na companhia de até mais duas pessoas), seja conduzido a um cosmo transcendental, dissociado do universo exterior e que remete a um vazio contínuo iluminado por lanternas que reproduzem a estética daquelas usadas nas tradicionais cerimônias japonesas Tooro nagashi, sendo associadas à espiritualidade e ancestralidade. A obra surgiu a partir das incursões de Kusama pela criação de instalações imersivas em salas espelhadas, uma possibilidade que ela começou a explorar na década de 1960. Àquela altura, a artista vivia nos Estados Unidos, para onde se mudou em 1957, aos 28 anos, e onde permaneceu até 1973. Foi nesse período que os seus trabalhos passaram a dialogar mais fortemente com a pop art, a psicodelia e os happenings.
Da intenção à prática, contradições enriquecem a produção artística
Curiosa e paradoxalmente, embora a ideia original fosse que, ao se envolver com suas obras, os espectadores fossem convidados a abdicar da própria individualidade e se perder no infinito, experimentando uma forma de auto-obliteração, as interações com esses trabalhos são apropriados pelo público à sua maneira, sendo comum, hoje, que essas obras imersivas sejam encaradas quase como um convite às selfies – o que não representa nenhum demérito para a artista ou para os visitantes, apenas evidencia como a arte, por si, está aberta a múltiplas formas de interação e interpretação.
Diga-se, na avaliação de Douglas de Freitas, curador do Inhotim, esse tipo de comportamento – que, exaltando a própria imagem, corre na contramão da proposta original da artista – ajuda a explicar o sucesso e popularidade dos trabalhos de Yayoi Kusama, famosos por atrair filas de visitantes, muitos dos quais ávidos por fazer e compartilhar selfies naqueles ambientes psicodélicos e “instagramáveis” – e aqui é importante reforçar que esse adjetivo não deve ser lido como uma característica intencional da artista, cuja trajetória remonta os anos 60, sendo, portanto, muito anteriormente ao surgimento das rede sociais no contexto da virtualidade. “Mas é notável que esses ambientes psicológicos criados por ela se inscrevem também nessas dinâmicas do contemporâneo”, reflete.
Outros paradoxos. Essas não são as únicas contradições apontadas nos trabalhos da artista. Vale registrar, por exemplo, que a mesma Yayoi Kusama que, em 1968, promoveu a Naked Demonstration/Anatomic Explosion – em que dançarinos nus, com bolinhas pintadas pelo corpo, distribuíram declarações anticapitalistas na Bolsa de Valores de Nova York –, celebrou, neste 2023, a sua segunda parceria com a grife de alto luxo Louis Vuitton.
Para Allan Schwartzman, contudo, os trabalhos de Kusama não podem ser simplesmente classificados como comerciais ou não comerciais, pois preservam um singular senso de continuidade. “Talvez isso tenha a ver com seus olhos e sua percepção. Não sei. Pode ser algo muito físico, pode ser muito psicológico”, diz, defendendo que esse trânsito por diferentes formas de produzir artes em nada desabonam a artista. Ao contrário disso, opina, essas escolhas apenas reforçam a sua versatilidade e originalidade ao trafegar por diversos suportes e contextos sem nunca deixar sua linguagem artística se degenerar.
Douglas de Freitas concorda. Ele lembra, por exemplo, que discussões sobre a comercialização da arte já aparece na história da japonesa pelo menos desde 1966. Naquele ano, participando da 33ª Biena de Veneza, ela colocou a venda, clandestinamente, as esferas que compunham a escultura Narcissus Garden – aliás, vale registrar que uma versão dessa obra, reunindo 750 globos de aço inoxidável sobre um espelho d’água, pode ser vista desde 2009 na cobertura do Centro de Educação e Cultura Burle Marx, no Inhotim.
Agora em conjunto, o curador sugere que Aftermath of Obliteration of Eternity, I'm Here, But Nothing e Narcissus Garden podem ser lidas como exemplares representativos da trajetória da artista. “São obras que nos ajudam, de uma maneira muito bonita, a entender como Yayoi Kusama pensa os corpos e os espaços em sua obra”, diz, sublinhando as diferentes escalas de cada instalação.
Projeto paisagístico e arquitetônico
Idealizada em 2016, a Galeria Yayoi Kusama foi projetada e desenvolvida pelos arquitetos Fernando Maculan, do escritório MACh Arquitetos, e Maria Paz, do Rizoma Arquitetura. Ao longo dos anos, enfrentando as mais diversas intempéries, o desenho foi se transmutando, mas sempre preservando uma ideia central: a de que a obra se “encaixasse” naquele território e se apresentasse como uma lâmina, que divide o mundo externo do universo de Yayoi Kusama.
Além disso, dado que as obras das artista são conhecidas por atrair filas de visitantes, houve a preocupação de se criar uma área que abrigasse esse volumoso público. Para isso, foi instalado no local uma praça, bancos de madeira e vegetação baixa. O sombreamento é garantido, hoje, por tampões modulares, mas, no futuro, à medida que a trepadeira asiática Congea tomentosa for se incorporando à estrutura, será a própria vegetação a proporcionar sombra e captura de umidade no local. De bônus, essa cobertura viva ainda vai conferir ao espaço um caráter de permanente transformação. Não por outra razão, Maculan e Maria têm classificado a galeria, que abriga uma coleção permanente, como dotada de uma certa impermanência.
Por sua vez, o paisagismo aposta no desenho de um caminho sinuoso que, feito de pedras, passa por entre quase 4.000 bromélias e outras diversas espécies vegetais que remetem ao universo da artista, como raras palmeiras japonesas. O projeto foi idealizado por Juliano Borin, curador botânico do Inhotim há 12 anos, Geraldo Farias, da equipe do Jardim Botânico do instituto, com contribuições de Bernardo Paz, fundador do museu. “Tivemos o cuidado de selecionar plantas que possuem manchas ou pintas avermelhadas, conversando com a estética de Yayoi Kusama”, salienta Borin.
Sobre a artista
Nascida em 1929, Yayoi Kusama vive atualmente em Tóquio, capital japonesa, onde também mantém seu estúdio. Aos 94 anos, completos em 22 de março, ela continua ativa em sua prática artística, tendo seu trabalho reconhecido e exibido internacionalmente. Neste ano, por exemplo, ela celebrou a sua segunda parceria com a Louis Vuitton e ganhou um pavilhão no Inhotim – é importante mencionar que o escritório da artista acompanhou todo o projeto, atuando até mesmo na aprovação de peças de divulgação. Além disso, esculturas inéditas de Kusama estão atualmente em exibição na galeria David Zwirner, em Nova York – gerando filas e mais filas no lugar.
SERVIÇO:
O quê. Abertura da Galeria Yayoi Kusama, que reúne as obras I'm Here, But Nothing e Aftermath of Obliteration of Eternity
Quando. Neste domingo, 16, a partir das 10h. Visitação de terça a sexta-feira, das 9h30 às 16h30, e aos sábados, domingos e feriados, das 9h30 às 17h30.
Onde. Instituto Inhotim (rua B, 20 Fazenda Inhotim, Brumadinho)
Quanto. A partir de R$ 25 (meia entrada). Crianças até 5 anos não pagam. Visitação gratuita às quartas-feiras.
Mais informações. Para visitar a obra "Aftermath of obliteration of eternity" é necessário retirar senha. Saiba mais pelo site inhotim.info/yayoikusama.