Foi em janeiro de 2019 que a jornalista e escritora Jacqueline Farid decidiu viajar para o Líbano, para conhecer o país no qual seus avós maternos nasceram. A viagem em si aconteceu em maio daquele ano, mas, neste ínterim (entre a decisão e a partida propriamente dita), Jacqueline fez uma imersão em livros sobre o país e na produção literária de autores de lá, em um processo que, aponta, foi desenhando, em um sua mente, um país - e lhe dando muitas ideias.
Foi plantada, assim, a semente de "O Árabe Invisível", livro que ela autografa neste sábado, a partir das 10h, na Livraria Jenipapo, na Savassi. A reportagem do Magazine conversou com Jacqueline sobre esse que é seu terceiro romance, desta vez chancelado pela Páginas Editora. Confira.
Como o romance foi se delineando na sua cabeça e quais eram as suas principais diretrizes...
Eu decidi escrever o livro assim que eu bati o martelo por viajar para o Líbano. Antes da viagem propriamente dita, comecei a ler tudo que encontrava sobre o país e sobre escritores libaneses. E também sobre Istambul, que seria a minha primeira parada. Li obras como "Os Libaneses", do Murilo Meihy, pesquisador e professor da UFRJ, ou "Beirute Noir", da Editora Tabla, assim como "Istambul", do Orhan Pamuk. E também vi muitos filmes, especialmente sobre o Líbano. Isso foi desenhando um país na minha mente e me dando ideias. Mas isso, sem eu ter preocupação nenhuma sobre o que seria o livro ainda, porque, no meu caso, eu escrevo livros que têm viagens como dispositivo, os livros surgem mesmo na viagem, é quando começam a existir como literatura. Já no Líbano, houve um momento em que pensei comigo, voltando de algum passeio, em Beirute: 'Como seria se o meu avô estivesse ali, me observando? E foi nesse momento que nasceu o livro. É o meu terceiro romance, e todos os meus livros nascem a partir do título. Na hora que tenho o título, sei que já tenho o livro, mesmo só tendo o título. Então, nesse caso, duas coisas se revelaram, já no Líbano. A primeira, que seria 'O Árabe Invisível' (o título). A segunda, que o meu avô - no caso, representado por um personagem fictício, o Youssef, mas inspirado na figura dele - seria um personagem mais forte no livro do que eu imaginava anteriormente. E, a partir daí, o livro foi se construindo aos poucos. Eu só terminei de escrever em fevereiro de 2021. Depois, até voltei ao livro em março deste ano, mas isso não mudou nada, ele já estava pronto.
Gostaria que falasse mais dessas decisões que aconteceram já no curso da escrita...
Pois é, nesse processo de escrita, muitas coisas que não tinham sido pensadas até então, ocorreram, como também a participação como personagem do escritor Gibran Khalil Gibran, que nasceu em Bsharri, que é a terra dos meus avós. E outra coisa que decidi lá, e que é interessante, é que seriam duas vozes. Decidi que teria essa participação maior do avô, eu decidi que ele teria, talvez como alguém que vem do outro lado, como um fantasma, alguma coisa desse tipo, um espírito. Como que houvessem dois personagens, porque queria colocar dois pontos de vista diferentes. Que olhassem para a mesma coisa com observações, com reflexões diferentes sobre elas.
Que temas atravessam a narrativa? Ensejou provocar alguma reflexão particular no leitor?
Na verdade, eu não escrevo com objetivo de provocar algum tipo de reflexão, não. Eu escrevo a partir das minhas próprias reflexões, e acho que isso ecoa no leitor muitas vezes de forma completamente diferente. Acho que tem um momento que você escreve o livro a partir de suas reflexões, das suas contemplações, de sua história de vida, de seus valores, enfim, de tudo o que acredita, especialmente também a partir do caminho pelo qual os personagens vão te levando, e essas reflexões vão levando a outras reflexões por parte do leitor. No caso desse livro, se eu tinha algum objetivo era o de acertar as contas com a minha ancestralidade, que era uma coisa que eu tinha negado muito, durante muitos anos. Por algum tempo, eu não tinha orgulho dessa minha origem libanesa, mesmo eu tendo vivido na casa da minha avó, que nasceu no Líbano. E também a questão feminina.
Em que sentido?
O livro também aborda questões de gênero muito importantes, as principais delas, colocadas na narrativa, a de que só os homens têm direito à herança, por lei. Isso por vezes é negociado, mas especialmente na época que meu avô morreu, por exemplo, nos anos 70, era mais forte. Mas ainda hoje vigora, de a herança ficar para os homens, e não para as mulheres. E também a questão da obtenção da cidadania. Eu, como filha de uma mulher de origem libanesa, sendo descendente pela linhagem materna, não tenho como pedir a cidadania. Meu pai teria que ser filho de libaneses para eu ter acesso a essa cidadania, então, essas duas questões de gênero são colocadas de uma forma talvez, mais reflexiva, digamos assim. Uma reflexão minha, eu, como uma mulher escritora. Mas, por outro lado, eu não escreveria com esse objetivo, na verdade, ele não é um livro que se pretende feminista, por exemplo. Escrevi mesmo com objetivo mesmo de acertar as contas com essa ancestralidade, e muito do que acontece nos livros que escrevo, romances construídos a partir de viagens que fiz, é revelar um pouco desses lugares para pessoas que ou já foram a esses lugares e querem revê-losr com outros olhos, ou que nunca foram, mas querem conhecê-los de alguma forma. É uma forma de narrar a viagem a partir da visão dos personagens, porque, pra mim, a viagem também é muito importante, assim como a escrita.
Queria que falasse da protagonista da história, a Soraia...
Pois é, já me perguntaram se ela é meu alter-ego. Ela não é (risos). É um personagem bem fictício, que tem coisas em comum comigo, sim. Uma delas é de ter ido visitar o Líbano pela primeira vez, de ser descendente pela via de avós maternas, de ela ser uma viajante, ser uma mulher sozinha... Mas todas as demais características e acontecimentos são exclusivamente dela, da personagem, e não minhas. E eu também gosto de fazer um jogo com o leitor, que é o dessa fronteira muito tênue que existe entre realidade e ficção. Normalmente, o que ocorre é que eu sempre visito todos os lugares citados nos meus livros. São lugares que de fato experimentei. Nunca descrevi um lugar nos meus romances sem ter ido, todos foram visitados. Então, essa é uma parte forte de realidade, a descrição dos lugares. Mas também tem a parte da construção dos personagens, do romance em si, que são ficcionais, E, na verdade, eu acho que isso se torna interessante. Esse exercício, a quem interessa, de adivinhação, digamos assim, do que seria verdade ou do que seria ficção. Se bem que no caso desse livro em particular, essa fronteira se torna menos tênue porque tem um personagem que veio do outro lado, do outro mundo, morto, então isso torna a ficção mais clara e evidente. Mas, mesmo assim, acho que há momentos em que a pessoa vai ficar em dúvida, se eu vivi determinadas ou não. E, veja, não tenho muito interesse em esclarecer isso justamente por ser parte da criação da literatura que faço, essa questão de não delinear, mas mostrar sempre a existência, que é uma existência da vida humana, entre a ficção e não-ficção. Normalmente, as pessoas, quando lembram do que ocorreu mesmo 15 minutos atrás, isso já vem com uma carga ficcional, pois já vem cheia das impressões da própria pessoa sobre o acontecimento. E acho isso um dos aspectos mais interessantes da vida: como o ser humano é capaz de ficcionalizar a própria realidade. É isso que tento explorar um pouco no livro.
Pode falar mais sobre essa característica de sua escrita, que é a de nascer a partir de uma viagem real?
Eu escrevo sobre as viagens, isso é muito bom, juntar as duas cosias, mas já viajei para inúmeros lugares sobre os quais não escrevi, lugares pelos quais me apaixonei e que não pretendo torná-los assunto dos meus livros, ao menos neste momento. Então, as viagens existem totalmente independentes da literatura, pra mim. A questão é se algum dia vou escrever algo literário que não esteja vinculado a viagens. Acho que não, pelo grande prazer que me provoca unir as duas coisas. Então, quando estou viajando, está a Jacqueline, aquela não é apenas uma escritora, mas também a escritora. Quando eu fui fazer jornalismo, eu achava que viajaria muito. Num primeiro momento, isso aconteceu, fiz algumas viagens a trabalho, quando trabalhava em BH, no Diário do Comércio. Depois, fui para o Rio de Janeiro e fui trabalhar cobrindo macro-economia, que é uma editoria que não é muito, digamos, viajante. Então, viajei muito pouco a trabalho, e isso foi frustrante para mim. Com a escrita, acho que também encontrei uma forma de viajar a trabalho, só que de uma maneira que não é jornalística.
Como começou esse entrelace de ficção e experiências de viagem?
Eu sempre gostei muito de viajar, mas sou uma viajante tardia, porque sou filha de comerciantes, do interior de Minas, de Itabirato. E, você sabe, loja não fecha, no caso do comércio do meu pai, que era um misto de papelaria e banca de jornais, não fechava nem no domingo. Comecei a viajar com meu tio ali pelos 12 anos, e comecei a viajar para o exterior só depois dos 20. Primeiro pela América do Sul - e sim, também muito pelo Brasil. Só mais tarde para a Europa e muito mais tarde ainda, para o Oriente. Gosto muito de viajar, é uma necessidade minha. E gosto de viajar sozinha. Acho que, para viajar como escritora, estar sozinha faz muita diferença. Agora, pela primeira vez vou experimentar escrever sobre uma viagem que fiz (para Egito e para o Líbano) este ano no qual fui com uma grande amiga, e isso tem sido estranho (risos), porque, por ter viajado com outra pessoa, eu anotei muito menos. Normalmente, minha companhia nas viagens que faço são os caderninhos que levo e que me ajudam muito na escrita. E, claro, os lugares, que eu considero que também são personagens, por mais que não sejam ficcionalizados. E eles não são de fato, mas só de estarem ali, colocados na obra a partir do meu ponto de vista, da forma como os vi - veja, eu não coloco serviço, 'vá em tal lugar', 'faça tal coisa' - é uma impressão pessoal, uma experiência ou que tive ou que dou aos personagens. Então, já os coloca como personagens. É como se de alguma forma eu moldasse esses lugares para a minha percepção e para a minha literatura.
Serviço
Lançamento do livro "O Árabe Invisível" (Páginas Editora, 210 páginas, R$ 49)
Autora: Jacqueline Farid
Neste sábado (5), a partir das 10h, na Livraria Jenipapo (rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi)