Quando a escritora Victoria Mendes começou a ler romances e fantasias, ela notou que as histórias mais famosas não traziam casais homoafetivos. “À medida que fui crescendo, fui me descobrindo como uma pessoa que gostava de inventar e de contar histórias”, lembra. Foi depois da descoberta desse gosto e talento que ela também passou a criar suas próprias narrativas. E se antes ela sentia falta de se ver representada no que lia, agora ela podia transportar o que desejava para tudo que criava. “Queria também que outras mulheres sáficas pudessem se ver representadas”, diz ela, que hoje tem 24 anos e sete livros lançados.  

Assim, durante a pandemia da Covid-19, a belo-horizontina Victoria Mendes decidiu iniciar o seu primeiro livro. “Passei a estudar o mercado independente, já que ele dá essa possibilidade de publicar sem uma editora, e decidi tentar”, conta. O caminho da mineira é semelhante ao de muitos novos autores, que acabam construindo um público de forma independente, antes de trabalharem, de fato, com editoras tradicionais.  

Exemplo disso é Clara Alves. Ela começou a criar histórias em plataformas online e, agora, tem livros que ultrapassam as 100 mil cópias vendidas – caso de “Conectadas”, de 2019, lançado pela editora Seguinte. “Heartstopper”, que virou sensação na Netflix em 2022, também veio da internet. Os quadrinhos de Alice Oseman foram publicados inicialmente pelo Webtoon, aplicativo de origem sul-coreana que reúne HQs independentes feitas para a web.  

Victoria avalia que começar de forma independente fez mais sentido para ela e que, de certa forma, continua sendo o caminho de muitos autores, principalmente brasileiros. “Hoje estamos vendo mais livros LGBTQIAPN+, mas muitos ainda são vindos do exterior. Lá o mercado já é muito mais expandido nesse sentido. Para os escritores nacionais, acontece muito mais dessa forma”, observa. 

A autora mineira – que acumula mais de 2,7 milhões de leituras e é figurinha carimbada na lista de mais vendidos da Amazon (o livro “Liz Flores É uma Farsa”, da Editora Qualis, ocupa a 16ª posição entre os as obras com temática LGBTQIAPN+ e a 6ª entre os romances lésbicos) – pontua que, embora a trajetória independente exija ainda mais dedicação e recursos retirados do próprio bolso dos autores, é gratificante notar que tem existido mais espaço para essas produções nas editoras.  

Tão gratificante quanto isso é o retorno que ela recebe de quem lê suas obras e as novas portas que se abrem – além de ter podido participar de bienais do livro, ela também já prepara uma nova história para o ano de 2024.  “Eu recebo muitas mensagens de leitoras falando dos meus livros. São pessoas que às vezes têm a idade que eu tinha quando comecei a ler. Eu gostaria de ter tido tantas opções assim, porque é importante. Ajuda a gente a se entender mais”, afirma. “Se eu tivesse tido opções de filmes, livros e entretenimento que contassem histórias de amor entre mulheres, teria me descoberto mais fácil e passado por um processo muito mais tranquilo, porque quando você não se vê em nenhum lugar, você acha que não está tudo bem”, completa.  

Apesar da representatividade e das opções mais diversas disponíveis, Victoria pondera que é preciso ter cuidado para não ter uma opinião enviesada. “A gente acaba vivendo numa bolha, acha que acabou o preconceito, mas não é assim. Ainda recebo mensagens de leitoras falando que não podem comprar os livros porque os pais não podem ver a capa, pedindo para que elas sejam mais discretas”, conta.  

Para Victoria, o caminho para combater isso e o próprio preconceito é continuar dando espaço para as narrativas LGBTQIAPN+. “É importante continuarmos escrevendo, reforçando essas histórias, porque ainda não conseguimos chegar num contexto em que as pessoas aceitam. Quanto mais escrevermos e trouxermos as narrativas, mais fácil será ter aceitação”.  

Nem só de ficção se constrói a luta 

Foi quando alguns amigos que finalizavam pesquisas acadêmicas estavam buscando editoras para publicar seus trabalhos que Gilmar Nogueira decidiu criar a Queer Livros. A editora, voltada para estudos que exploram questões de gênero e sexualidade, acabou dando origem a uma livraria. “Fazíamos vendas online, e eu ainda não tinha pensado em ter algo físico, não era o projeto. Mas, como temos um catálogo muito grande e alguns espaços não queriam vendê-los, terminei abrindo uma por conta própria”, afirma.  

Além das produções da editora, o local também reúne obras de outros catálogos que abordam, além de sexualidade e gênero, discussões sobre raça e classe. “São questões que não podem ser separadas. Não podemos achar que estamos em um mundo à parte, que pessoas LGBTQIAPN+ não têm raça, não têm classe. O diálogo precisa ser interseccional, e precisamos avaliar como nos relacionamos com tudo isso”, ressalta.  

Com 150 livros publicados desde a fundação da editora, em 2017, Gilmar avalia positivamente o trabalho que vem sendo construído. “Os estudos sobre sexualidade e gênero estavam muito dispersos. Juntar esses autores foi importante e também para dar espaço a eles, porque nem sempre são pessoas que acessam o mercado editorial tradicional”, pontua. Ele acrescenta que a reunião desses estudos também colabora com conteúdos e materiais para que novas pesquisas sejam feitas. 

Mas ainda há desafios. Alguns deles são tornar o texto acadêmico mais acessível e aproximar os leitores da produção acadêmica. “Precisamos criar essa ponte com a população em geral. Não estamos pesquisando coisas distantes, estamos pesquisando modos de vida”, explica. Gilmar comenta ainda que os próprios autores precisam aprender a se relacionar com o público, utilizar ferramentas e estratégias para divulgar os trabalhos desenvolvidos. “É preciso furar a bolha, pensar em novos modos de divulgação. Os autores ainda permanecem muito distantes. A academia não sabe como divulgar nas redes sociais, ficam muito fechados, e hoje a ideia é que o autor não só escreve, ele ajuda a divulgar, faz palestra, sessão de autógrafo e se aproxima do leitor”.