Era uma vez um menino que nasceu na Maternidade-Escola, no bairro Laranjeiras, no Rio de Janeiro, ficou órfão de mãe com apenas 2 anos e foi adotado pelo casal Lília e Josino (Zino), que o levou para morar em Três Pontas, no Sul de Minas Gerais. Chamado pela amiga Elis Regina como “a voz de Deus”, ele se tornou um dos maiores artistas do Brasil (quiçá do planeta) e, apesar de carioca de origem, carrega Minas na alma, no canto e até no nome: MIlton NAScimento. 

Apesar de essa história ser conhecida por grande parte do público e, sobretudo, pelos fãs do cantor e compositor, as raízes de Bituca eram praticamente desconhecidas. “Certa vez eu vi uma reportagem que trazia a família do Milton lá em Três Pontas e mostrei para a minha irmã, a Vanda. Comentei que a gente também poderia fazer uma matéria com a nossa família de Juiz de Fora.

Foi então que ela sugeriu que só uma reportagem não seria suficiente, mas sim um livro contando de onde vem essa raiz do Bituca, principalmente contando quem era a nossa avó, que foi uma mulher guerreira e tão importante”, relata Vilma Nascimento, prima de primeiro grau do artista e que acaba de lançar - após mais de duas décadas de pesquisa - , ao lado dos jornalistas e pesquisadores Jary Cardoso (seu marido) e João Marcos Veiga, também historiador, o livro “De Onde Vem Essa Força” (Editora Letramento), que resgata a história da família biológica daquele que é o maior expoente do Clube da Esquina. 

 

Como frisa João Marcos – responsável pela redação final da obra e por transcrever boa parte das entrevistas –, apesar de Milton ser o Nascimento mais proeminente, a força do clã é feminina. E era importante dar visibilidade às pessoas e a uma história praticamente apagada.

“A trajetória do Milton, por razões óbvias, pelo vínculo afetivo, era contada só a partir da família adotiva, mas a Vilma também queria mostrar essa família negra, a família Nascimento. É um pouco fácil a gente recontar a história que já existe, falar do Bituca artista e tudo mais. A gente tentou tornar visível um pouco uma história que realmente não existia, que é a história das famílias negras, dos descendentes de pessoas escravizadas. São histórias que são apagadas, que não têm resquícios. E esse foi um dos grandes desafios”, acredita João Marcos, que tem uma ligação fraterna com a narrativa: ele é filho de Fredera, que foi guitarrista da banda Som Imaginário, e sobrinho de Wagner Tiso. 

Maria, Maria

As tantas Marias cantadas por Milton Nascimento em suas canções também são o alicerce de sua origem. A primeira, dona Maria Antônia, a Vó Maria, nascida em 1900 em Lima Duarte, na Zona da Mata mineira, foi roceira, empregada doméstica, parteira e rezadeira.

Ela viveu até os 80 anos e teve dez filhos (oito mulheres e dois homens), sendo que oito dos rebentos foram com o marido, José Narcizo do Nascimento, o Baiano, “um sem-vergonha e boêmio que só aparecia em casa de ano em ano”, como costumavam dizer as filhas Chiquinha e Ercília. A outra Maria fundamental na vida de Bituca foi Maria do Carmo, a Carminha, sua mãe biológica. Primogênita da família, nascida em agosto de 1918 também em Lima Duarte, ela tinha 1,63 m de altura, cor preta, cabelo e olhos castanhos e instrução primária. Com apenas 17 anos, a jovem se mudou para o Rio – então capital federal – para trabalhar como empregada doméstica.  

No decorrer da pesquisa para escrever o livro, Vilma Nascimento encontrou com sua irmã, Vanda, alguns pertences de Carminha. Entre os objetos, uma carteira de trabalho que traz a única foto conhecida da mãe de Milton, com data de 1º de abril de 1940. A semelhança com o filho único impressiona.

“É igualzinho. O sangue realmente fala mais alto. Eu, infelizmente, não tenho nenhuma lembrança dela, não a conheci, porque eu era muito pequena quando ela morreu (Maria do Carmo faleceu aos 26 anos, em 1944, vítima de tuberculose, em Juiz de Fora, onde está enterrada). Mas minhas tias me contaram que ela era uma moça honesta, trabalhadeira e exímia cozinheira. Ela também adorava imitar os outros, era divertida e gostava muito de cantar. Tinha uma voz doce”, relata Vilma, que também enveredou para o ramo artístico.  

Cantora, ela chegou a gravar discos e ressalta o DNA cultural da família. “Meu avô era seresteiro, tocava viola e sanfona. Eu me lembro também de minha mãe cantando enquanto cozinhava. No geral, somos uma família de gente festeira, alegre, que adora cantar, se reunir”, frisa Vilma, que tem 75 anos – seis a menos do que o primo famoso, que completou 81 em 26 de outubro. 

  

 

Laços afetivos 

 

Mesmo tendo sido adotado por Lília e Zino, Milton manteve contato com os parentes de sangue. Com a própria Vilma, ele teve uma proximidade grande quando ela morou na Cidade Maravilhosa, nas décadas de 1970 e 1980.

 

A avó materna – que o chamava de “Mirto” – chegou a ir a alguns shows do neto e promoveu uma feijoada em sua casa em 1972 com os parentes, além do próprio Bituca e de alguns amigos dele, como Gonzaguinha e Fernando Brant, seu parceiro mais frequente. “Eu digo que o Milton é muito sortudo por ter duas famílias e pelo destino dele ter sido decidido da maneira que foi. Quando a tia Carminha morreu, ele chegou a morar com a nossa avó em Minas, mas não se adaptou. Ele sentia falta da Lília, da mãe dela, a dona Augusta (que foi patroa de Carminha). Mas a vó e a Lília tomaram uma decisão que foi fundamental pra ele. Que o melhor seria mesmo ele ser adotado. Uma vez, o Bituca me falou que, se ele não tivesse sido criado em Três Pontas com a Lília, ele não seria o que é hoje. E ele tem toda razão”, relata Vilma Nascimento enfatizando que a família biológica e a do coração sempre se deram muito bem. 

 

A prima conta que, assim que iniciou o projeto da publicação, avisou o cantor. Foi Milton que recebeu a primeira cópia do livro. “Até pra ele conferir o que estava sendo feito. Ele corrigiu uma ou outra coisinha e, segundo o Augusto (filho e empresário do músico), o Bituca gostou”, revela a autora, que perdeu um pouco do contato com o parente famoso, mas esteve em alguns dos shows da turnê de despedida do artista, realizada no ano passado. 

Para a sua pesquisa, Vilma chegou a ir também atrás do pai biológico de Milton Nascimento, o motorneiro João. Segundo relatos de quem conviveu com os pais de Bituca, a paixão de Carminha por João foi avassaladora, e ela chegou a morar com ele, em uma favela carioca, logo que teve o filho. “Eu cheguei a ir a um prédio onde o João trabalhou como porteiro no Rio, mas só sabiam que ele tinha morrido. A irmã dele, Esmeralda, adorava a Carminha. Quando ela morreu, a Esmeralda ficou arrasada e avisou ao João. Ele ligou para saber se a família de dona Augusta ficaria com seu filho. Disseram que sim. ‘Se você não for criá-lo, o Bituca fica com a gente’, respondeu Augusta. João, então, disse: ‘Então tá bom, está em boas mãos’. E nunca mais procurou o menino”, relata Vilma. 

Para João Marcos Veiga, o livro cumpriu sua missão de trazer essa história oculta de Milton Nascimento à tona e que pode, inclusive, abrir portas para outros projetos. “A gente vê como o livro amplia a história negra do Milton, que era pouco visível. A gente acredita que vá, sim, render e trazer boas discussões, bons debates. Pode gerar outras pesquisas subsequentes”, opina o jornalista. 

E afinal, “de onde vem essa força”? Vilma Nascimento solta uma gargalhada e não titubeia: “Temos uma disposição, uma alegria, somos muito trabalhadeiras; não somos de ter preguiça. Temos boa saúde e não somos de esmorecer para as coisas. Você vê o Bituca, que está lá, firme e forte. Outro dia eu vi uma foto dele, e ele está tão bem, com uma carinha boa, feliz. Não somos de deixar a peteca cair. E o Milton carrega muito essa força dos Nascimentos. Com certeza ele é um forte”. 

 

“Raça” 

Foram os versos da música “Raça”, parceria de Milton Nascimento e Fernando Brant (aliás, uma das pessoas a quem o livro “De Onde Vem Essa Força” é dedicado, além de Vanda da Silveira, irmã de Vilma, e, claro, dona Maria Antônia, a Vó Maria, e Maria do Carmo, a Carminha) que inspiraram os autores a batizar a obra.

A letra da canção ainda faz referência a Monsueto (sambista carioca que era parente distante dos Nascimentos), à própria Vilma e à única filha da Vó Maria ainda viva, Ercília, hoje com 91 anos, e que foi uma das fontes entrevistadas para a obra: “Todas Marias, Maria Dominga/ Atraca Vilma e Tia Ercília/É Monsueto e é Grande Otelo/Atraca, atraca que o Naná vem chegando”). O lançamento presencial da publicação só deve acontecer em 2024 (ainda sem data) e nas cidades que fazem parte da história de Bituca e de sua família: Belo Horizonte, Juiz de Fora, Lima Duarte, Três Pontas, Alfenas e Salvador.  

 

Serviço 

“De Onde Vem Essa Força: Histórias da Família Nascimento de Minas para o Mundo” 

Autores: Vilma Nascimento, Jary Cardoso e João Marcos Veiga 

Editora Letramento 

Páginas: 132 

Preço: R$ 60 

Vendas: No site (editoraletramento.com.br/produto/de-onde-vem-essa-forca-historia) e nas livrarias a partir da próxima semana