No debate após a exibição de “A Cidade Onde Envelheço” no Festival de Brasília, a portuguesa Francisca Manoel, uma das protagonistas, afirmou que um dos motivos da autenticidade tão cativante do longa é que ele tinha “um pouco de autobiográfico”. Para ela, a cineasta Marília Rocha, goiana, também se sente meio estrangeira em Belo Horizonte.

Questionada sobre a colocação, a diretora explicou que ela faz certo sentido, mas exatamente pelo contrário. “Curiosamente, Belo Horizonte me trouxe mais um sentimento de pertencimento do que de deslocamento. Vivi em muitas cidades, mas BH foi onde fiquei mais tempo, justamente pela sensação de acolhimento que ela me ofereceu”, revela. Segundo Marília, é daí que o filme extrai seu sabor autobiográfico. “A vontade de registrar esse sentimento”, sintetiza.

Nada mais natural que a cineasta, que começou no documentário, tenha desejado registrar um pedaço da própria vida em seu primeiro longa de ficção. Nascida em Goiânia em 1978, Rocha construiu sua carreira em Belo Horizonte, como uma das fundadoras da produtora Teia, onde ficou por dez anos e dirigiu filmes como “Aboio” e “A Falta Que Me Faz”, antes de seguir para a Anavilhana.

Foi ali que ela realizou “A Cidade Onde Envelheço”, que estreia nesta quinta-feira (9) – e, com o poder de suas memórias afetivas projetadas sobre a história de duas imigrantes portuguesas na capital mineira, saiu de Brasília com os Candangos de melhor filme, direção, atriz e ator coadjuvante. “Houve uma transformação de vida ao longo de todos os anos na Teia até a abertura da Anavilhana. O tempo que passou, os filmes que assisti, os livros que li, os lugares por onde passei, as pessoas que encontrei, tudo isso afeta o interesse e acaba impregnando os filmes”, reconhece a diretora.

Essa familiaridade de cheiros e experiências essencialmente belo-horizontinas é o arcabouço da história da portuguesa Francisca (Francisca Manoel) que, vivendo na capital há um tempo, hospeda a conterrânea Teresa (Elizabete Francisca), amiga que ela não vê há 15 anos. Nesses encontros e desencontros – por vezes cômicos, por vezes melancólicos – de quem chegou e quem já mora aqui, as duas dão vida à paixão de Marília por Belo Horizonte e à dolorida decisão de que é hora de partir – a cineasta foi viver em Portugal entre 2014 e 2016.

A relação da diretora com a cidade se manifesta nas próprias locações do longa. Ela conta que, durante a escrita do roteiro, os lugares muitas vezes vinham antes das cenas. “Foi o caso do bar no Mercado Novo, do Parque Municipal, das ruas e das galerias do centro, e de muitos interiores, que foram as casas e os quintais de amigos. Na verdade, todo o filme foi feito assim, do cruzamento entre pessoas e lugares”, descreve.

Foi esse processo orgânico e instintivo que tornou a primeira experiência de Rocha com a ficção algo bem menos traumático do que se imagina. A cineasta admite que a ficção gerou muitas situações novas e diferentes, mas acabou se mostrando uma experiência bem mais próxima do documentário do que esperava. “Construímos uma história ficcional sem nunca perder de vista o trabalho documental, lidando com situações inesperadas todo o tempo e com abertura para movimentos e situações que não controlávamos”, explica.

Com isso, o resultado final tem o mesmo DNA que ela sempre buscou em seu trabalho como documentarista. “A ficção neste filme foi, sobretudo, uma forma de provocar sentimentos reais. Nosso trabalho era capturar esses sentimentos enquanto eles aconteciam, com um rigor documental”, define.

O sucesso dessa proposta foi atestado pela premiação em Brasília, que a diretora espera que leve as pessoas a ver o filme. O triunfo de “A Cidade” – um longa dirigido, produzido e protagonizado por mulheres – no festival alimentou ainda o discurso recente pela maior presença feminina no cinema brasileiro, seja à frente ou atrás das câmeras e nas mostras.

Rocha diz se sentir, sim, parte dessa conversa – pertinente porque “a desigualdade de tratamento, de salários, de reconhecimento e participação na liderança das equipes ainda é demasiado grande”. Ela ressalta, no entanto, que esse não foi o ponto de partida de seu longa.

“Ele foi fruto de uma atração, um chamado, por assim dizer, por certas pessoas, certas histórias e um lugar, que é Belo Horizonte. Para mim os filmes são, sobretudo, uma forma de me aproximar de coisas e pessoas das quais gosto. Fiquei instigada por aquelas moças à deriva, sem rumo certo na vida, à procura de algo que nem elas próprias sabiam o que era”, resume.


Marília Rocha
Memórias, nascimentos e celebrações

Cineasta estava em Portugal quando seu filme venceu em Brasília

Divulgando o lançamento de seu filme enquanto ainda amamenta o recém-nascido Chico, Marília Rocha encontrou um tempinho para falar com o Magazine sobre suas primeiras memórias cinematográficas, o trabalho de direção e como ficou sabendo da enorme vitória de “A Cidade Onde Envelheço” em Brasília.

Você consegue descrever qual é sua primeira “memória cinematográfica”?

Não me lembro do primeiro filme que assisti, mas tenho uma memória marcante de uma experiência do cinema. Lembro de acompanhar minha mãe em salas grandes e um tanto vazias. Acho que ela me levava para acompanhá-la em sessões vespertinas, que pouca gente ia ver. Era uma sensação muito prazerosa, aquele ambiente escuro e acolhedor, com filmes estranhos, que só muito anos depois passei a gostar.

Houve algum momento específico, que te marcou, em que você sentiu aquela segurança “sou uma cineasta, é isso que sei e quero fazer da minha vida”?

Desde o primeiro filme que fiz, tive a certeza de que queria fazer outro. Mas isso não dá nenhuma segurança. Se desse, perderia a graça… A percepção de não saber como será, do desconhecimento total que é um novo filme, é uma experiência boa demais. Viciante até.

O filme é um pouco a história dessas duas mulheres se apaixonando, não romanticamente. Como foi seu processo de conhecer as duas atrizes e trazer o que te apaixonava nelas para as personagens da história?

As duas têm um magnetismo fascinante, cada uma a seu modo. Assim que as vi diante da câmera, me apaixonei por elas. Isso aconteceu em momentos diferentes. A Francisca Manuel conheci em Belo Horizonte, junto com outras portuguesas que vieram passar uma temporada na cidade. Algum tempo depois, conheci a Elizabete Francisca, durante o casting que fizemos para o filme em Lisboa. A personalidade de cada uma, ao mesmo tempo contrastante e complementar, e a habilidade que ambas tinham em lidar com a câmera e criar cenas e diálogos, era realmente irresistível.

Você tinha acabado de dar à luz, então não pôde ir a Brasília. Como ficou sabendo que o filme ganhou quase todos os prêmios no festival?

Fui recebendo mensagens tarde da noite, enquanto amamentava. Quando chegou a primeira, achei que a cerimônia estava encerrada e tínhamos ganhado o prêmio de ator coadjuvante, com o Neguinho. Mas as mensagens continuaram, para minha grande surpresa. Foi muito importante para o filme, para mim, e também para toda a equipe. Há os prêmios específicos das atrizes e o do Neguinho, um belo e merecido reconhecimento aos três. E o prêmio de melhor filme é para o conjunto de pessoas que o construíram, são muitas mãos trabalhando em conjunto.