“Aquarius”

A vida secreta das pequenas coisas 

Longa é ensaio humanista e familiar sobre a história contida nos espaços e objetos

Por Daniel Oliveira
Publicado em 01 de setembro de 2016 | 03:00
 
 
 
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Na última segunda-feira (29), Dilma Rousseff subiu à bancada do Senado. Por 15 horas, ela discursou, respondeu a acusações, foi insultada, vilipendiada, criticada. E reagiu a tudo com uma educação e uma inteligência inacreditáveis que mostraram que ela é uma pessoa e uma política boa demais para o Brasil.

A batalha encenada em “Aquarius” também obedece a essa educação formal. Até o momento em que o diretor Kleber Mendonça Filho e sua protagonista Clara (Sonia Braga) se questionam se essa educação não está simplesmente mascarando a falsidade da etiqueta – e a que interesses essa etiqueta atende. Que status quo ela busca manter. E Clara faz o que Dilma não fez segunda-feira. Solta os cachorros em duas cenas maravilhosas e catárticas, que 54 milhões de brasileiros têm o direito de ver nesta semana.

“Aquarius”, no entanto, não é um filme de grandes momentos. Pelo contrário. É um longa sobre o significado incomensurável das pequenas coisas, o valor histórico e emocional contido no que pode parecer banal a olho nu.

Na sequência inicial, uma mulher olha para uma cômoda e lembra de uma ótima trepada que teve nela. Pode parecer grotesco, mas é divertido, natural e sintetiza perfeitamente como as coisas são mais que simples objetos. Uma cano de esgoto tem profundo significado social. Uma foto de família com o rosto da empregada cortado, ou indiscernível, diz muito sobre o Brasil. Um voto é um pedaço de papel ou um conjunto de zeros e uns numa urna, mas é inestimável. Ou deveria ser.

As coisas são partes de uma vida, dão significado a ela, carregam em si sentido e história. Como Taiguara canta em “Hoje”, espécie de música-tema do longa, “Hoje, trago em meu corpo as marcas do meu tempo / meu desespero, a vida num momento / a fossa, a fome, a flor, o fim do mundo”. Isso é absolutamente verdadeiro para Clara, que sobreviveu a um câncer e perdeu uma mama. E ao resistir à venda de seu apartamento, luta para não perder mais nenhum pedaço de si, da sua história, contra a suposta invisibilidade da velhice. Não por acaso, seus estados de espírito se revelam todos em seu vasto e belo cabelo, crescido após a doença, que ela usa como as asas de uma fênix renascida (algo válido tanto para Clara quanto para Braga, que mostra aqui porque é uma das maiores estrelas da história do cinema nacional).

Esse valor histórico e emocional das coisas se reflete ainda na paixão da protagonista, jornalista musical aposentada, por seus discos. Kleber usa uma deliciosa trilha de clássicos populares, que vão de Maria Bethânia a Queen, para mostrar que o fato de que Johnny Hooker e Adele são bons músicos não significa que o que veio antes tenha que desaparecer. Como Clara diz em uma entrevista, a democratização do digital é ótima, mas não precisa substituir o valor do vinil.

Todos esses micro-elementos são usados por “Aquarius” para fazer um ensaio humanista e familiar sobre nossa macro-relação com os espaços, com nossa história escrita na arquitetura urbana e que o neoliberalismo tenta apagar/reescrever. Até o sexo, que despertou a censura, é usado por Kleber como comentário sobre esses temas.

Em uma cena, o diretor ressalta a relação puramente comercial e cômoda estabelecida com esses novos prédios, fazendo uma oposição entre a paixão que guia Clara e um sexo que é pura impessoalidade e conveniência. E em outra, com seu humor requintado, Kleber representa na tela, sem nenhuma complexidade, o que a construtora quer fazer com o edifício do título.

“Aquarius” é feito desses significados escondidos. É um filme guiado mais pelo ritmo da vida do que pela velocidade da trama, o que pode afastar alguns. Mas todos que sonharam ver Dilma mandando essa porra toda à merda na segunda vão se sentir um pouco vindicados pela magia do cinema.

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