Há um momento, bem no clímax de “Assassinato no Expresso do Oriente”, em que o diretor Kenneth Branagh (“Cinderela”) enquadra os 13 suspeitos do crime do título exatamente como Cristo e os apóstolos no quadro “A Última Ceia”, de Da Vinci. É um belo plano, que dificilmente passa despercebido, e pode soar como uma afetação vazia para alguns.

Não é. Na verdade, ele é a melhor chave para entender a grande sacada da abordagem de Branagh – e o maior trunfo do filme que estreia nesta quinta-feira (30). “Assassinato” é uma história sobre encenação, sobre um grupo de pessoas cientes de que estão num palco, interpretando personagens dentro de uma trama. Oriundo do teatro, o cineasta inglês alicerça seu longa nesse conceito – e essa consciência metalinguística sobre sua artificialidade quase kitsch é o que mais o destaca da adaptação dirigida por Sidney Lumet em 1974.

A trama gira em torno da morte do milionário Edward Ratchett (Johnny Depp) no trem do título, preso nos trilhos por uma nevasca. À bordo da mesma viagem, está também o detetive Hercule Poirot (o próprio Branagh), que inicia uma investigação em que todos os passageiros do vagão Calais são suspeitos.

A essa altura, só quem esteve em Marte nos últimos 70 anos não conhece o mistério – e sua famosa resolução. Então, cabe a Branagh tornar o jogo de xadrez mais divertido do que o xeque-mate. E, além do elenco estelar – que, nada por acaso, dá mais espaço à srta. Mary Debenham, vivida por Daisy Ridley em seu primeiro grande papel após “Star Wars: O Despertar da Força” –, o cineasta faz isso com mudanças que tentam atualizar o texto de Agatha Christie.

A mais clara delas é escalar um Dr. Arbuthnot negro (Leslie Odom Jr.) e transformar o vendedor de carros italiano e a freira sueca nos latinos Marquez (Manuel Garcia-Rulfo) e Pilar Estravados (Penélope Cruz). As alterações permitem um comentário sutil sobre a questão racial na Europa às vésperas da Segunda Guerra. E quando o sequestro da garota Armstrong entra em cena, enseja também um olhar social mais antenado com os EUA de hoje.

Investigação. O sequestro, aliás, é um dos raros pontos em que o novo longa perde para o de 1974. Enquanto Lumet conseguiu uma forma mais orgânica de inserir uma história pregressa bastante randômica e intrusiva, por meio de manchetes na sequência de créditos, Branagh opta por jogá-la no meio da investigação, gerando uma série de diálogos expositivos e uma conexão que nunca soa muito natural.

Ela só funciona graças à maior diferença entre as duas adaptações: a construção de um Poirot mais humano e desenvolvido por Branagh. Se o trabalho de Albert Finney no original era uma caricatura excêntrica e exagerada, afinada com o tom kitsch da produção, Branagh faz do detetive o claro protagonista do filme, alicerçando a história no arco de um homem sistemático e metódico (claramente portador de TOC), que tem suas muitas certezas e sua visão de certo/errado preto/branco questionados pelas reviravoltas da investigação.

Esse foco maior no arco do personagem faz o longa começar durante uma outra investigação, com Poirot no Muro das Lamentações. Isso permite a Branagh dar um maior respiro a seu filme, com um início cheio de espaços abertos, explorados em muitos travellings e planos gerais, antes da história ser aprisionada no trem e nos planos claustrofóbicos da investigação.

O cineasta aproveita esse momento, então, para dar a cada um de seus astros a chance de brilhar, com os depoimentos servindo quase como monólogos teatrais filmados em close. E aí quem se destaca, para além do ótimo trabalho de Branagh como Poirot, é Michelle Pfeiffer e sua Sra. Hubbard – com uma atuação kitsch e magnética, ciente da transição do palco para o cinema no arco da personagem, que não faz feio à performance original de Lauren Bacall. Se “Assassinato” é uma história que todos já conhecem, com poucos motivos para ser revisitada, a presença da beleza e do talento semiaposentados da atriz na tela já é razão suficiente. 

FOTO: Fox / divulgação
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Jornada dupla. Kenneth Branagh assina a direção do filme e interpreta o protagonista Hercule Poirot