Era dezembro de 1970 quando o recém-formado engenheiro químico Ivan Lins sentou-se à frente do presidente de uma grande empresa da área de cimentos, em sua sala na sede da companhia, no Centro do Rio de Janeiro. Amigo do pai do jovem, o executivo garantiria a ele seu primeiro emprego de carteira assinada, numa instalação em Barbacena, em Minas Gerais.
Àquela altura, Ivan começava a se destacar como cantor e compositor. Já havia chegado ao segundo lugar do 5º Festival Internacional da Canção, naquele mesmo ano, com "O Amor É o meu País", parceria com Ronaldo Monteiro de Souza. Sua "Madalena", escrita com o mesmo parceiro, era um sucesso na gravação de Elis Regina lançada em compacto também em 1970.
Ivan justifica porque estava prestes a aceitar um emprego de engenheiro químico, com um salário que não era exatamente tentador, e deixar de lado a promissora carreira de músico. "Meu pai, militar, não queria que eu fosse músico de jeito nenhum. 'Você vai ter uma profissão segura, a música fica como hobby. Quando sobrar um tempo, você vai fazer música com seus amigos'. E eu era muito obediente", conta.
Mas seu destino foi traçado quando, no fim da entrevista, o presidente da empresa, antes de se despedir, sacou três folhas de papel em branco. Ele queria autógrafos para a mulher e as duas filhas, fãs de Ivan. "Eu só vi Barbacena voando", lembra o músico. "Saí daquela sala já decidido que a minha profissão ia ser música mesmo".
Agora, 55 anos depois daqueles autógrafos --e do segundo lugar no FIC e do aval de Elis--, Ivan celebra sua trajetória de sucesso num show que estreia no Vivo Rio no dia 26 de julho e vai a São Paulo em 1º de agosto, no Tokio Marine Hall. O espetáculo comemora também os 80 anos do músico, completados nesta segunda-feira, dia 16 de junho.
A longa caminhada está coberta no repertório do show "Ivan Lins 80", que vem desde os marcos iniciais da carreira até a inédita "Meninos de Gaza", melodia sua com versos de Simone Guimarães. "Falo dessa canção e começo a tremer, porque a letra é impactante, muito sensível ao abordar a violência contra as crianças, essa loucura que estamos vivendo. Ela está no mesmo bloco de 'Aos nossos Filhos', que canto com Claudio (Lins, filho de Ivan, cantor e ator, além de diretor do espetáculo)", afirma ele, que tem outro de seus filhos nos bastidores, o diretor de produção João Lins, que também é seu empresário. Além de Claudio, participam do show do Rio as cantoras Leila Pinheiro e Fafá de Belém.
Ivan explica que o roteiro não segue uma linha cronológica, passeando por sua trajetória a partir de blocos temáticos --o romantismo de "Iluminados" e "Ai Ai Ai Ai Ai"; os relacionamentos conturbados de "Saindo de Mim" e "A Noite"; as músicas feitas com Ronaldo, letrista fundamental na sua vida; as canções de sabor interiorano escritas com Vitor Martins, seu parceiro de inúmeros sucessos. "Tem também um bloco de sambas que fiz com outros parceiros, Celso Viáfora, Paulinho César Pinheiro, Chico Buarque."
"Ivan Lins 80" faz um apanhado da produção de um compositor que traçou um percurso único na música popular brasileira. De um lado, o sucesso radiofônico e a presença constante em trilhas de novela, quando isso era o maior índice de popularidade do mercado. De outro, a aclamação internacional como autor sofisticado, avalizado por músicos de jazz como George Benson, arranjadores como Quincy Jones e cantoras como Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan.
"Acho que a chave é a melodia. As pessoas falam muito das minhas harmonias, mas eu costumo responder: 'Quando você está tomando banho, o que você canta no chuveiro?'", brinca o compositor. "Me vejo sobretudo como um melodista. A melodia é a capacidade de contar uma história, com início, meio e fim. Ela começa aqui, passa por ali e acaba lá."
Ivan identifica o nascimento do melodista quase no berço. "Morei nos Estados Unidos entre os dois e cinco anos. A primeira música que me lembro de ter escutado na vida foi uma de Stephen Foster (autor de 'Oh, Susanna', considerado o pai da música americana). Minha mãe tocava muito as coisas dele no piano. Minha influência maior vem dessa escola dos standards americanos e dos discos infantis dessa época, com músicas dos filmes de Walt Disney. Demorei muitos anos para chegar a essa conclusão", conta.
Hoje, é evidente que o sucesso que se anunciava no início da trajetória de Ivan como artista, em 1970, se realizou com folgas. Mas não sem percalços. A primeira crise se deu internamente, ainda nos primeiros passos. Ele conta que se tornou cantor por acaso. Seu desejo e vocação era compor. "Comecei a cantar com voz rouca porque queria mostrar minhas músicas imaginando como ficariam na voz de um cantor negro. Eu tinha obsessão pela música negra. Aí tentava imitar, mas era menos um estilo meu e mais para que as pessoas conhecessem a música e gravassem", lembra.
"Até que um dia o Paulinho Tapajós me viu cantando assim e me pôs para fazer um teste (na gravadora Philips, por onde ele lançou seu primeiro disco, em 1970, pelo selo Forma). 'Mas tem que cantar desse jeito', ele disse. Fiz isso e me contrataram na hora", conta Ivan. "Aquilo era 'forçação', não tinha como eu aguentar aquilo, até pela minha garganta mesmo. Decidi parar com a voz rouca. Foi fazer isso e a Philips me mandar embora. Aí vieram as vacas magras. Também não aguentava mais pedirem para eu cantar 'Madalena'. Tive depressão, saí fora mesmo, parei praticamente com a carreira."
Esse período, ele conta, durou de 1972 a 1974, quando conheceu Vitor Martins e retomou o rumo. A primeira parceria da dupla foi "Abre-alas", canção que trazia as marcas do sufocamento da ditadura militar, enquanto mirava num futuro sem ela --em versos como "encosta essa porta que a nossa conversa não pode vazar" e "abre alas pra minha bandeira/ já está chegando a hora". "Essa música limpou a minha barra, porque eu vinha sendo patrulhado desde 'O Amor é o Meu País', que diziam que era patriota. Depois a parceria com Vitor consolidou quando a gente lançou o disco 'Somos Todos Iguais nessa Noite'".
Nos anos 1980, começa a internacionalização da carreira e vem o marco do Rock in Rio, em 1985. "Ali no ganhei um público de massa imenso", lembra Ivan. "Minha carreira chegou a um ponto em que eu precisava andar com guarda-costas. Aí, em 1989, falei: 'Não quero essa vida pra mim'. Parei a carreira, saí do mercado, jazzifiquei mais meu trabalho, inclusive". Com esse novo foco, Ivan fundou em 1991, com Vitor Martins e Paulinho Albuquerque, a gravadora Velas, que lançou Chico César e Guinga e registrou discos de artistas como Pena Branca & Xavantinho e Lenine.
Nas últimas décadas, o compositor vem lançando álbuns de regravações e, com menos frequência, de repertório inédito --o último do tipo foi "Amoragio", de 2012. Agora, ele começa a desenhar um novo disco de inéditas. "Produzi muita música nos últimos anos, mas tanta música. Tenho lá em casa, no meu cofre de pérolas, umas cinquenta."
Antes, vai lançar outro projeto, um álbum reunindo sambas que compôs ao longo da carreira, mas com uma roupagem diferente de tudo que já fez. "O conceito vem do sonho que eu tinha de ver meus sambas tocados como se eu morasse em Madureira, ali do lado da Portela", afirma o compositor. "Chamei três arranjadores --Paulão Sete Cordas, Rafael dos Anjos e o Carlinhos Sete Cordas. Entreguei quatro músicas para cada um e só vou ver os arranjos quando for para o estúdio terminar de gravar. Tem participações de Mart'nália, Xande de Pilares, Zeca Pagodinho, Diogo Nogueira, Péricles, Ferrugem."
Aos 80, portanto, Ivan segue renovando o sentido do brado "abre alas pra minha folia".