A criança de dois anos aparece de costas na foto e olha para o mar. O registro ajuda Adriana Calcanhotto, 53, a recuperar uma lembrança que, na verdade, ela não tem. Naquela primeira vez, que o tempo apagou da memória, mas que a imagem conservou intacta, a gaúcha nascida em Porto Alegre tinha sido levada pelo pai à praia de Capão da Canoa, no litoral do Rio Grande do Sul.

“As pessoas que nascem em cidades sem mar sofrem esse impacto original de maneira diferente, porque ele carrega a força do deslumbramento”, acredita Adriana, que acaba de lançar “Margem”. Sucessor de “Maré” (2008) e “Maritmo” (1998), o álbum encerra a trilogia marítima iniciada por ela há duas décadas. A turnê começa em Belo Horizonte, no dia 23 de agosto.

“Uma vez que estrear em BH deu sorte, não tem porquê mudar. Aliás, não sou só eu, todo mundo estreia aí”, brinca a cantora, que esteve na cidade pela última vez com “A Mulher do Pau Brasil”. No espetáculo, Adriana apresentou, em primeira mão, “Dessa Vez”, uma das nove faixas inéditas do novo álbum. A letra parte de uma questão formal para chegar a um típico desenlace amoroso.

“Aos poucos, fui me dando conta do significado dessa minha relação com o mar, em suas várias frequências: física, literária, metafísica, metafórica. Os discos me levaram a investigar isso”, afiança a artista, que cita Herman Melville (1819-1891), Homero (928 a.C.-898 a.C.) e Luis de Camões (1524-1580) como referências.

Dorival Caymmi, presente nos dois discos anteriores, também é apontado, mas, curiosamente, ficou ausente do atual. Outra contradição surge na maneira como Adriana diferencia “Margem” dos demais. “Tive tempo para fazer esse trabalho, sem pressão, expectativa ou prazo. Nunca tinha experimentado essa liberdade e descompromisso, pude decantar as camadas de cada canção”, diz.

Na capa do álbum, Adriana é tragada por um sórdido mar composto de lixos plásticos, o que a leva a usar um antônimo da morosidade que formatou o disco para explicar seu conteúdo. “Tem uma urgência maior. As pessoas também jogavam lixo no mar e havia refugiados afogados, por conta da ganância absurda, quando lancei os outros discos. Mas, agora, essas ilhas sólidas de plástico estão mais visíveis. Comemos o plástico jogado no fundo do mar”. 

Tais dramas ficam explícitos em “Ogunté”. A abertura da canção, “rente à fala, cujo gênero não importa”, mas que lembra nitidamente um rap, reproduz a “fala de um pescador muito jovem” que Adriana assistiu na TV, e diz: “Essa obra de arte de Deus”. “Ele estava maravilhado com um cardume de sardinhas, algo que deveria ser banal, mas, diante do estado do oceano, o deixou estupefato. Esse choque de ele dizer ‘obra de arte’, e não apenas ‘obra de Deus’, dá o nível da estupefação que também me comoveu”, explica.

Outro ritmo contemporâneo explorado é o funk. Em “O Bonde”, a gravação foi feita com 150 bpm (batimentos por minuto), ao invés dos clássicos 130. “Adoro essa batida e fiquei impactada. Tem gente que diz que o funk não é mais o mesmo, que ‘madame não gosta que ninguém funk’. A mesma coisa aconteceu com o samba, também tido como música de pobre e de preto. Essas reações conservadoras sempre retornam”, opina. 

Batismo. Logo depois de “Maré”, o título de “Margem” “apareceu” para Adriana. “É uma palavra rica, que se desdobra. Existe uma certa metalinguística nesse álbum, com canções que falam sobre a feitura das canções. Há também a condição marginal do artista, a margem da página e a margem marinha que, devido à maré, não é fixa”, elabora. 

Ao mencionar a marginalidade artística, a cantora aproveita para elogiar um colega. “Sempre tive interesse em acompanhar os passos de artistas marginais como o Jards Macalé, que acaba de gravar um disco estupendo”, enaltece, em referência a “Besta Fera”. Aliás, Adriana também se colocou em uma situação limítrofe ao realizar o videoclipe para a faixa-título do álbum.

Os 20 minutos ininterruptos da gravação foram condensados em menos de quatro por Murilo Alvesso, que dirigiu a aventura. Nesse tempo, a intérprete corta e raspa os próprios cabelos, com os famosos “olhos de onda” fixos na tela. “Não é a câmera, é quem está por trás dela. Mesmo sendo de gerações diferentes, eu e o Murilo temos o mesmo gosto para cineastas, iluminadores e fotógrafos”, afirma.

“Esse universo nos trouxe uma confiança mútua. Sem essa entrega, não seria possível filmar, porque não tem take dois, é só o agora”, completa a protagonista. “Os Ilhéus”, poema de Antonio Cícero musicado por Zé Miguel Wisnik, traz à tona essas questões prementes ao ser humano, como a passagem do tempo. “O presente é tudo o que temos”, conclui Adriana. 

Assista ao clipe do novo álbum de Adriana Calcanhotto: