Uma das obras mais perturbadoras do pintor espanhol Francisco Goya (1746-1828), criada diante de seu horror com as guerras napoleônicas, traz a inscrição “O sono da razão produz monstros”. Foi “tomado por esse mesmo estado de perplexidade” que Arnaldo Antunes, 59, compôs, logo após o segundo turno das últimas eleições presidenciais, “O Real Resiste”.
A música dá nome a seu mais novo disco, já disponível nas plataformas digitais. Lançada como single em novembro, ela teve o seu videoclipe retirado, sem explicações, da grade de programação da TV Brasil. A letra, ácida, afirma em tom irônico: “Miliciano não existe/ Torturador não existe/ Fundamentalista não existe/ Terraplanista não existe/ Monstro, vampiro, assombração/ O real resiste/ É só pesadelo, depois passa/ Múmia, zumbi, medo, depressão”.
“Na minha cabeça, é inadmissível que as pessoas não apenas se declarem favoráveis a brutalidades, como elejam um projeto de poder intolerante com a diversidade, as minorias raciais, étnicas e religiosas, e que defende a tortura e a censura”, diz Arnaldo. “Os valores que sempre preguei, de preservação do meio ambiente, respeito aos direitos humanos e redução das desigualdades, estão sendo hostilizados. Só pode ser um pesadelo”, completa ele.
O artista diz que sua intenção foi “fazer um discurso dentro do espaço artístico, pois é onde realizamos as nossas utopias”. “Espero que o meu desejo ganhe espaço e que o real resista aos tempos hostis”, destaca. Essa dimensão da realidade “se expande” ao longo das dez faixas.
Repertório
Em setembro, Arnaldo completa 60 anos. A canção “Termo Morte”, antigo poema que ele decidiu musicar, reflete sobre a finitude. “Conforme a gente envelhece, a possibilidade de morrer parece mais próxima. Claro que esse é um tema universal, em todas as épocas houve uma produção artística em torno da morte, mas, com o passar da idade, essa é uma questão cada vez mais viva para mim”, observa.
Aos 50 anos, o músico compôs “Envelhecer”, que revelava a sua “vontade de manter a inquietude”. Desta vez, ele busca “um acordo com a morte, para que ela seja rápida e indolor”, por meio dos versos que falam “venha sem aviso/ invisível/ e me leve o mais subitamente/ possível”. “É a minha expectativa de como deve ser”, conta. Por outro lado, Arnaldo também trama, poeticamente, a respeito da continuidade da vida.
“Na Barriga do Vento”, parceria em quinteto que acolhe Carlinhos Brown, Pedro Baby, Pretinho da Serrinha e Marcelo Costa começou a ser urdida durante a turnê dos Tribalistas. Os parceiros “nem se lembravam direito daquela música feita espontaneamente” no momento em que o entrevistado a trouxe de volta a baila.
“Meu rebento/ Meu bebê/ Quando crescer/ Na barriga do vento/ Sua asa batendo hei de ver”, canta o anfitrião na faixa, ao lado de sua filha, Celeste Antunes. “Tenho quatro filhos e um enteado e estou vendo todos eles ficarem adultos. A música é sobre o apego que a gente tem pelos filhos, ao mesmo tempo que os preparamos para alçarem os seus voos. Estou vivendo isso”, informa.
Em “Luar Arder”, quem o acompanha nos vocais é a mulher, Marcia Xavier, que ainda assina com o marido a igualmente romântica “De Outra Galáxia”, e será responsável pelo cenário e pelas projeções da nova turnê. “Todos os temas deste disco estão ligados a mim emocionalmente”, garante o cantor, que dá como exemplos “Língua Índia” e “Dia de Oca”. As duas canções foram compostas durante o período que ele passou com os índios Yawanawás, no Acre.
A intimidade também aparece na sonoridade do trabalho, arranjado apenas com piano e cordas. Na abertura e no desfecho do disco, Arnaldo se volta para “a valorização das raízes brasileiras”. “João” homenageia João Gilberto e conseguiu ser mostrada ao “Papa da bossa nova” antes de sua morte, em julho de 2019.
Na composição, Arnaldo canta que “uma nação não se inaugura com balas de canhão/ mas com a brisa que bate no juízo de um João”. “É a revelação de outro Brasil”, declara. A derradeira “Onde É que Foi Parar Meu Coração?” surge como um eloquente samba que não nega as origens.
Mas Arnaldo segue em desalento com a pasta da Cultura, que anunciou Regina Duarte como sua nova secretária. “Nada contra a Regina, mas não dá para ter esperanças. É um governo que nega a escravidão, demoniza o rock, parece inimigo da educação”, desabafa. “A polarização não é mais entre esquerda e direita, mas entre quem defende a civilidade e a democracia e os que querem fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal”, encerra.