O escritor José Castello, autor da coletânea “Clarice na Cabeceira” (Rocco), costuma dizer que Clarice Lispector escreveu para o século XXI. “Ela foi renegada durante muito tempo, mas hoje, ironicamente, até os recortes de suas frases nas redes sociais mostram que Clarice esteve certa, à frente do tempo que nunca foi seu. Sua leitura inunda qualquer um”, diz. Ainda que a admiração unânime às palavras de Clarice seja atemporal, suas linhas marcadas com o ardor consciente do desespero demoraram décadas para começar a ganhar um lugar de respeito entre os gigantes da literatura nacional. Neste sábado,10 de dezembro, na data que marcaria o aniversário de 96 anos da escritora nascida na Ucrânia, naturalizada brasileira e autoproclamada pernambucana, apesar de radicada no Rio de Janeiro, Clarice Lispector continua atravessando o tempo. Para celebrar a vida e a obra da escritora, o Magazine convidou quatro fãs envolvidos com sua obra para comentar a relevância de seus livros e suas palavras nos dias atuais.

Lançamento. Neste ano, foi publicada pela primeira vez em português a coletânea “Todos os Contos” (Editora Rocco, R$ 38,50), do americano Benjamin Moser. O livro saiu primeiro nos Estados Unidos, no ano passado, e figurou entre a lista dos mais importantes do ano do jornal “The New York Times”. Não é para menos, já que a publicação percorre desde os primeiros escritos da escritora, na adolescência, até suas últimas linhas, em 1977. Obra clássica para fãs e estudiosos.

"Me considero uma clariceana completamente apaixonada. Eu fiz uma grande declaração de amor à Clarice Lispector com o espetáculo (“Simplesmente Eu, Clarice Lispector”). Realizei uma pesquisa muito grande sobre a obra e a vida dessa escritora maravilhosa. E percebi que não só os personagens da Clarice são absurdamente encantadores, como ela mesma está disposta ali, entre eles e suas histórias. Essa não separação das coisas, entre escritor e a chamada ficção, é algo que Clarice transcende com grandeza. Eu fiz uma exposição neste ano também com a proposta de colocar as pessoas no lugar da Clarice, olhar com os olhos dela. É um pouco do que ela mesma fazia escrevendo”.
Beth Goulart, atriz e diretora da peça “Simplesmente Eu, Clarice Lispector”.

FOTO: CZN/divulgação
0
 

"Clarice consegue ser diferente de tudo que qualquer pessoa leu. “Água Viva” é isso. É como se Clarice entrasse na sua vida e te mostrasse outros lados dela. É invasivo, sensível, um terremoto acontecendo sob nossos pés até então firmes, mas agora bambos, incapazes. Sua literatura é tão surpreendente que não é possível delinear história, linguagem, enredo: há a subversão de todas essas peças, há algo arrebentando o leitor por dentro o tempo todo. Houve um fenômeno recente de recortes de suas frases, principalmente nas redes sociais, o que, por um lado, teoricamente empobreceria a rica e complexa obra de Clarice. Mas, no fundo, acho que faz bem divulgar a literatura dela seja como for, é uma ponte para outras descobertas”.
Teresa Montero, biógrafa de Clarice, autora do livro “Eu Sou uma Pergunta – Uma Biografia de Clarice Lispector” (Rocco)

FOTO: Youtube/divulgação
0
 

"Clarice não era uma mulher lamuriosa, blasé, depressiva, dada a tempestades em copos d’água. Tenho a impressão de que ela aproveitaria a vida com a leveza total, se não fosse uma espécie de barreira imposta a ela pelo mundo. E a literatura era uma forma de acolhimento, não de vômito desesperado. A literatura de Clarice não é profunda apenas, é como se não houvesse fundo aonde ela quer chegar. Por isso, era preciso escrever, escavar mais, sempre mais. Há algo interessante que notei logo na primeira vez que a vi: os silêncios. Ela mantinha pausas enormes, fora do comum, e muitas vezes voltava ao pensamento e à fala após minutos de silêncio, como se estivesse elaborando, antes de colocar para fora. Isso é de uma sabedoria imensa”.
Marina Colasanti, amiga de Clarice e autora do livro “Com Clarice” (Editora Unesp)

FOTO: Rubens Weil/divulgação
wef
 

"Todos os críticos da Clarice dizem que ela não passa de uma mulher que fica se confessando o tempo todo. Na ficção dela, exceto a crônica, não há uma linha em referência ao “eu”. O que Clarice fez, na verdade, foi ultrapassar essa barreira de palavras que nos cerca e protege. Ela dizia que escrevia para chegar “atrás” do pensamento. Ou seja, ultrapassar a camada de palavras com as quais a gente envolve o mundo e chegar ao que ela chamava de “coisa”: algo além da capacidade humana de compreensão. Cazuza me disse que tinha lido “Água Viva” 111 vezes, o melhor exemplo do que acontece com a literatura de Clarice. É uma perturbação".
José Castello, autor da coletânea “Clarice Na Cabeceira” (Rocco)

FOTO: Joaquim Carvalho/divulgação
0