A Jovem Guarda começou com uma proibição. E não foi com “É Proibido Fumar”, parceria de Roberto Carlos, 76, com Erasmo, 76, lançada pelo Rei em 1964. No segundo ano de instauração da ditadura militar no Brasil, em 1965, as transmissões ao vivo dos jogos de futebol feitas pela TV estavam suspensas. Assim, com o horário vago, a TV Record de São Paulo colocou no ar o programa que repetia o nome do mesmo disco gravado por Roberto naquele ano, e que passou a denominar um estilo musical e de comportamento voltado para a juventude.

Autor do livro “Como Dois e Dois São Cinco” (2004), o jornalista Pedro Alexandre Sanches aposta que a soma das canções de Roberto e Erasmo que estiveram nas paradas de sucesso foram “a obra mais ouvida de toda a história da música popular brasileira”. “São ‘apenas’ isso, as canções nacionais mais executadas na segunda metade do século passado”, dimensiona o crítico musical.

Cinco décadas depois, a tríade formada por Roberto, Erasmo e Wanderléa ainda surfa nas “curvas da Estrada de Santos” em “ritmo de aventura”, como diriam músicas e filmes daquele período. O Rei participa de todos os processos de sua aguardada cinebiografia dirigida por Breno Silveira (de “Dois Filhos de Francisco”). É também uma cinebiografia (“Minha Fama de Mau”, de Lui Farias, com previsão de estreia para o primeiro semestre de 2018) que vai contar a história do Tremendão – atualmente em estúdio para gravar um disco de inéditas, produzido por Pupillo – ao mesmo tempo em que prepara um livro de poesias, compõe para a trilha do filme sobre Eder Jofre (em parceria com Frejat) e retoma, no longa “Paraíso Perdido”, a carreira de ator. Ofício que Wanderléa desconhecia até o ano passado, quando estreou como atriz no musical que conta a história da Jovem Guarda. Como se não bastasse, a Ternurinha acaba de lançar sua autobiografia.

As novidades endossam os argumentos de Sanches, capaz de enxergar a influência do movimento para além de seu próprio tempo. “A Tulipa Ruiz cantando ‘Pedrinho’ me faz pensar em Jovem Guarda pelo filtro do Itamar Assumpção e da Vanguarda Paulista. Preta Gil é pura Jovem Guarda, no sentido da futilidade, da ligeireza e da falta de pudor pop. Nando Reis com Gil e Gal Costa para mim soa mais como iê-iê-iê tribalista que como rock tropicalista. Para sair do Brasil, Lady Gaga se apresentando recentemente vestida de Joelma da Banda Calypso é 100% Wanderléa maravilhosa, é 100% Roberto Carlos de azul distribuindo rosas vermelhas para as velhinhas”, compara.

Autor da polêmica publicação “Roberto Carlos em Detalhes”, que culminou em decisão favorável à liberação de biografias não autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal, Paulo Cesar de Araújo afiança a perenidade dos ecos. “Toda música brasileira pós-Jovem Guarda foi influenciada por ela, a começar pelo Tropicalismo. Gilberto Gil e Caetano Veloso perceberam que não poderiam ficar só no samba e no tamborim, senão perderiam o bonde da história. A geração dos anos 70, Djavan, Belchior, Zé Ramalho, foi toda eletrificada ouvindo a Jovem Guarda”, destaca. “Vejo esses novos projetos de Roberto, Erasmo e Wanderléa, de revisitarem suas memórias, como prova da força daquele repertório, representa a permanência de uma obra, como acontece com a bossa nova e a Tropicália, que também comemoraram datas”.

Produtor musical, Thiago Marques Luiz propõe uma reflexão ante os sucessos da última hora. “O Erasmo tem uma frase que resume a Jovem Guarda: ‘Se o simples fosse fácil tinham inventado outro ‘Parabéns pra Você’. Muitas pessoas, na época, achavam aquelas músicas uma bobagem, como hoje acham o funk. Elis Regina e Gil fizeram passeata contra a guitarra elétrica, uma coisa patética, mas depois aderiram. Resta saber se, daqui a 50 anos, Anitta e Pabllo Vittar vão continuar sendo referência como ainda são Roberto, Erasmo e Wanderléa”, observa. “Acho que isso é algo que não muda. O que mais existe é gente pretensamente intelectual negando o tecnobrega, espezinhando as cantoras de feminejo, mostrando nojinho pelo sertanejo universitário, pelo funk carioca e pelo forró ‘de plástico’. O preconceito não é estético, mas de classe. É algo próximo do racismo puro e simples”, avalia Sanches.

Rebeldia. Após vários imbróglios, o Rei decidiu dar sua versão dos fatos. Ainda sem previsão de estreia, já existe a confirmação de que haverá vários depoimentos de Roberto em off e canções interpretadas pelo próprio no longa-metragem que tem roteiro assinado a quatro mãos por Patrícia Andrade e Nelson Motta. “Não é uma cinebiografia, é uma autocinebiografia. Sua história contada por ele mesmo”, define Motta.

Por motivos diferentes, Wanderléa, 71, colocou sua história no papel em “Foi Assim: Autobiografia”. “Tive uma vida profissional e pessoal intensa, sem tempo para destilar as situações. O livro serviu como terapia”, assente. Episódios dramáticos como a morte por afogamento do filho de 2 anos e a perda da irmã, vítima de bala perdida, assim como o acidente que deixou seu então noivo (filho de Chacrinha) tetraplégico, são descritos. “Tudo foi difícil, não consigo reler porque toca meu coração”, confidencia.

Prestes a ser avó pela primeira vez (a filha Yasmin, 30, está grávida), Wanderléa não para na pista. “Agora assumi a vovó Ternurinha. Pode dizer que o segredo da minha vitalidade é muito tutu, angu e couve mineira”, brinca. Nascida em Governador Valadares, ela é a estrela do musical “60! Década de Arromba”, que chega ao Rio no início de 2018. “Sempre fui rebelde no palco e na vida. No musical é tudo mais determinado”, compara. Primeira mulher a posar grávida e nua, a cantora quebrou tabus ao aparecer de minissaia e cantar músicas sobre sexo nos anos 60. “Wanderléa é o lado B, a face da moeda que ouvimos muito menos, porque se tratava de uma mulher feminista tentando cantar para uma sociedade machista e misógina, que só queria ouvir a ala masculina da equação. Mais que isso, a parte comportada e careta, embora quase todas as músicas bem-sucedidas fossem também do roqueiro rebelde Erasmo. É louco pensar que mães e pais consideravam aqueles artistas transgressores, porque olhando em retrospecto a ideologia que vendiam era ingênua”, argumenta Sanches.


“Nunca fiz parte da Jovem Guarda”

FOTO: TV Gazeta / divulgação
Ronnie Von
Ronnie Von grava DVD depois de 20 anos afastado dos estúdios

É possível que toda uma geração se surpreenda ao descobrir que o apresentador do programa “Todo Seu”, há mais de uma década no ar pela TV Gazeta, motivou reações intempestivas e apaixonadas de fãs na década de 60, auge da Jovem Guarda. Em 2018, Ronnie Von, 73, vai lançar um DVD com clássicos da canção norte-americana, como “Night and Day” e “Georgia on My Mind”. “Não decidimos o título ainda. Escolhi canções que marcaram momentos-chave da minha vida. A ideia é destinar toda a renda obtida para ONGs,” conta.

O novo trabalho surge após 20 anos afastado dos estúdios. Conhecido como “Príncipe” por conta da música “Pequeno Príncipe”, gravada em 1966, Von parecia ter interrompido essa trajetória em definitivo com “Estrada da Vida” (1996). Quando poucos esperavam, ele voltou a surpreender, a exemplo do que havia feito em 1969, com o álbum “A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nunca Mais”. “Sempre quis fazer algo diferente musicalmente. Quando lancei meus álbuns psicodélicos, recebi críticas pesadas da direção da gravadora. Hoje meus discos são considerados pela crítica internacional como os melhores do segmento. Só para você ter uma ideia, um amigo comprou um disco original no exterior por US$ 4.000. Viraram clássicos!”, orgulha-se.

É por essas e outras que o artista, cujo maior sucesso musical continua sendo “A Praça” (Carlos Imperial) não se reconhece como membro do movimento capitaneado por Roberto Carlos, Erasmo e Wanderléa. “Comecei minha carreira musical na mesma época, mas, diferentemente do que a maioria das pessoas acreditam, eu nunca fiz parte da Jovem Guarda”, garante. “Nunca gostei de rótulos, eu era apenas um cantor em busca de espaço. Minha família inicialmente não prestigiou, queriam que eu seguisse os negócios da família, lutei contra o preconceito e deu certo”, recorda o entrevistado, que lançou o seu primeiro LP em 1966, com uma versão para “Girl”, dos Beatles.