Em 1972, Minas Gerais viu nascer, por entre suas montanhas, o longa-metragem que foi considerado o primeiro faroeste brasileiro autêntico, "um filme com herói e vilão, plantado numa realidade histórica e sem nenhuma afinidade com os filmes de cangaço", como está descrito nos créditos do cartaz de lançamento.
Com roteiro e direção de Schubert Magalhães, morto em 1983, e produção de Victor de Almeida e Flávio Werneck, "O Homem do Corpo Fechado" foi gravado em uma região compreendida entre Curvelo e Diamantina e teve como protagonista o ator Roberto Bonfim, no papel do vaqueiro João de Deus.
O tempo e os cortes que sofreu da censura à época quase se encarregaram de jogar no esquecimento esse importante registro da cinematografia mineira, mas, graças a um projeto aprovado na Lei Municipal de Incentivo à Cultura, ele está em pleno processo de recuperação.
Capitaneado pelo produtor Victor de Almeida " também jornalista, editor de Opinião do jornal O TEMPO ", o projeto visa, principalmente, reconstituir a parte sonora do filme.
Victor conta que em 1980, quando o filme estava sendo levado para a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro " o que se fazia necessário por não haver, em Belo Horizonte, condições adequadas de conservação dos originais ", os rolos de som, contendo trilha, diálogos e ruídos, se perderam no transporte.
"Hoje, o filme tem apenas os negativos de imagem e uma cópia com som, em bom estado, preservada no Arquivo Nacional, mas com os cortes feitos pela censura", diz, explicando que, dessa forma, a parte sonora está faltante em relação às imagens.
Ele aponta que, para recompôla, está procurando outras cópias que tenham sido feitas antes da intervenção dos censores, que, a propósito, se deu em trechos que continham falas inconvenientes ou, por exemplo, numa cena em que Dinorá, personagem que faz par romântico com João de Deus, abraça uma imagem de são Sebastião com uma sugestão erótica.
"Estou atrás de cópias que porventura ainda existam com o som original, sem os cortes. Chegamos a doar algumas para instituições públicas, como a Escola de Belas Artes da UFMG e o Palácio das Artes, só que, depois que o filme encerrou sua carreira comercial, elas não guardaram esse material. Se não encontrar esses trechos do som original, teremos que dublar no todo ou em parte a fala dos personagens", prevê.
Ele aponta que a restauração vai se beneficiar das novas tecnologias de finalização cinematográfica. O som será processado e reprocessado digitalmente, com limpeza de ruídos estranhos surgidos com o tempo e o uso.
Victor explica que a cópia, mesmo conservada no Arquivo Nacional, em condições climáticas adequadas, estava sujeita a deformações e que, por isso, a construção do novo som ótico era uma operação urgente e imprescindível.
"Isso porque não se trata de um filme qualquer, mas de uma das produções mineiras e brasileiras mais expressivas do período", sublinha, destacando ainda que, a partir de "O Homem do Corpo Fechado", teve início um novo ciclo de produção no Estado.
O produtor recorda que o filme veio à luz quando o Cinema Novo já encontrava seu ocaso e a produção nacional buscava outros rumos, pressionada pela censura do regime militar e a necessidade de se autosustentar, oferecendo ao público um produto mais comunicativo e menos politizado.
Com efeito, uma crítica publicada à época, assinada por Fernando Ferreira, destacava que ""O Homem do Corpo Fechado" foi realizado com a intenção bem clara de ser um filme popular, no qual essa exigência inicial não afastasse seriedade de intenções, coerência temática e legítima eficiência de uma narrativa que se propôs como dinâmica e envolvente".
Estréia de Schubert Magalhães em longas-metragens, "O Homem do Corpo Fechado" conta a história do vaqueiro João de Deus, que tem seu corpo "fechado" pelo avô Cansanção.
Depois de empregar-se e fazer um "serviço" para o coronel Trajano, vivido por Angelito Mello, o protagonista apaixona-se por Dinorá, interpretada por Esther Mellinger, que é mantida prisioneira por seu patrão.
Ele a sequestra e os dois passam a ser perseguidos por jagunços designados pelo coronel pelos chapadões do sertão das regiões Central e Norte de Minas.
Inspiração literária
Na apresentação do filme, Victor de Almeida explica que o mote que serviu de inspiração a Schubert foi a frase "tudo ali, pelo dito, quer que deva reger não o devido, mas o dado", proferida por Riobaldo " personagem que conduz "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa.
"Com essas palavras, o vaqueiro Riobaldo denuncia a opressão que domina o "Grande Sertão" e que só o homem, na luta pela sua afirmação humana, é capaz de superar. A partir dessa indicação, o cineasta Schubert Magalhães construiu seu primeiro longa-metragem", escreve.
Ele ressalva, porém, que "O Homem do Corpo Fechado" optou mais pelo patos roseano do que pelos dilemas metafísicos e existenciais com os quais o autor lida.
"O conflito fundamental foi buscado no cotidiano da vida mineira, mas solucionado à maneira dinâmica do western norte-americano, com muitas cavalgadas, lutas corporais e duelos a tiros. A opção se mostrou acertada em todos os sentidos. O filme foi visto à época " avaliação que resiste até hoje " como uma obra genuinamente mineira, com características originais da nossa humanidade e do nosso ambiente natural e cultural, magnificamente traduzidas pelos elementos constitutivos da obras cinematográfica, como atuação, fotografia, música, cenários e figurinos, ordenados por uma direção e montagem vigorosas", aponta.
Uma curiosidade é a presença, no elenco, do violeiro Renato Andrade, que, ainda nos primeiros passos de sua carreira musical, interpretou o personagem Sinhô Violeiro.
A trilha sonora, a propósito, foi assinada por Tavinho Moura e contou, em sua execução, com nomes como Toninho Horta, Sirlan Antônio, Aécio Flávio, Novelli e o próprio Renato, entre outros.
Dependendo, ainda, apenas da restauração de trechos do som " o que envolve o cotejamento entre a cópia e o negativo de imagem, o tratamento digital com restauração e melhora de qualidade do som e a confecção de novo negativo de som em 35mm, entre outros processos ", "O Homem do Corpo Fechado" vai ser destinado à exibição pública gratuita.
"Poderão ser feitas novas cópias do filme para cinema, vídeo e televisão, o que atenderá ao público em geral e também a historiadores, pesquisadores e estudiosos interessados no cinema brasileiro e sobretudo mineiro", diz Victor.