Comédia

'Friends' ganha especial: hora de rever a série e entender os motivos do sucesso

Exibido entre 1994 e 2004, programa marcou gerações e tem as suas dez temporadas disponíveis na Netflix

Por Raphael Vidigal
Publicado em 25 de março de 2020 | 16:06
 
 
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Foram mais de 16 anos de espera e os fãs terão que esperar mais um pouco. Após a confirmação de um episódio especial não-roteirizado, com mediação de Ellen DeGeneres, e a participação dos seis protagonistas, "Friends" teve suas gravações interrompidas em razão da pandemia de coronavírus. 

A previsão inicial era que o aguardado reencontro aconteceria em maio deste ano, para lançar o serviço de streaming HBO Max, da Warner Bros. Tudo, aliás, seria feito no mesmo estúdio da distribuidora estadunidense, em que as 10 temporadas do seriado foram filmadas. Atualmente, elas estão disponíveis na Netflix, onde mantém o posto de segunda mais assistida da plataforma, atrás apenas de "The Office". 

Ainda sem uma nova data, o especial de "Friends" não trará Jennifer Aniston, David Schwimmer, Courteney Cox, Matthew Perry, Lisa Kudrow e Matt LeBlanc revivendo seus icônicos personagens Rachel, Ross, Mônica, Chandler, Phoebe e Joey, mas, somente, batendo papo e relembrando momentos marcantes da série criada por David Crane e Marta Kauffman, que também estarão presentes. Pela participação, cada ator deve receber 2,5 milhões de dólares . 

Uma decisão acertada para preservar o legado de um programa de televisão de comédia que marcou gerações para além da década de 90, quando começou a ser exibido, e que cumpriu o papel de mostrar a estreita relação de amizade entre jovens que chegam à vida adulta, com todos os dilemas e vicissitudes desse período. 

Claro, escorregando muitas vezes em comportamentos que, com justeza, hoje são muito mais combatidos, como o machismo e a homofobia. O fato é que, com ótimas sacadas de humor, "Friends" já disse o que tinha para dizer. Abaixo, vamos analisar os motivos para esse sucesso. 

1 – Composição das personagens

O primeiro ponto que deve ser analisado é o da composição das personagens. Isso porque  grande parte do mérito da atração reside na qualidade do elenco selecionado. Qualidade esta que, obviamente, vem aliada a boa seleção de produtores e diretores, capazes de enxergarem naquelas pessoas as ideais para cada papel. A partir da linguagem televisiva clássica, que não busca o aprofundamento, mas certa superficialidade inerente ao ritmo do modelo, Ross, Chandler, Joey, Phoebe, Monica e Rachel representam conflitos, necessidades e ideais bem definidos, quase maniqueístas, ou seja, não existe aquela complexidade da pessoa que contém em si milhões de personalidades e enigmas. Porém, nesse caso, a série atinge o objetivo de alcançar o riso e gerar identificação junto a quem assiste. O mais importante é notar que se aquele mesmo texto fosse dito por outras pessoas, de outra maneira, sem as entonações, pausas, maneirismos, tiques e modos que cada intérprete soube empregar para sublinhar o estilo, ou mesmo o estereótipo de sua personagem, não teria a mesma graça.

2 – Fórmula narrativa

A narrativa é de ação, ou seja, baseada em acontecimentos, fatos, movimentações, idas e vindas nos relacionamentos, apropriação de datas comemorativas para dentro do enredo, encontros entre familiares, amigos, etc., mas isso tudo acontece na superfície, enquanto, nos subterfúgios, sentimentos são analisados e afloram. A forma como Monica lida com os pais, a ânsia por manter as coisas em ordem, a necessidade de encontrar um namorado, revelam aspectos de sua personalidade, como insegurança, carência, e, a partir daí, o telespectador pode, sem perceber, divertir-se enquanto se comove com aquele enredo. Isso pode ser empregado a todos os outros personagens da série. A fórmula narrativa baseada em fatos é de mais instantânea assimilação, pois ocorre numa dimensão do entendimento concreto, logo, exterior. Para observar o que não é visível, e que ocorre, portanto, no interior, evidentemente demanda-se um tempo maior, pois o entendimento é não mais tanto no campo visual, mas por associações. Ou seja, um gesto que significa algo que vai além da imagem exposta. Na televisão, a linguagem, via de regra, é essencialmente visual e imediata.

3 – Construção de enredo

A ideia de construir uma história com 6 amigos, três homens e três mulheres, portanto com o potencial da formação de casais, pode não ser a mais original, mas, certamente, só se tornou clássica com “Friends”. Ambientar os conflitos numa atmosfera de cumplicidade (que vai além da “obrigação” familiar), acompanhar com o crescimento deles os próprios dilemas, ou relembrar fases da vida pelas quais já passamos, permitiu que o seriado se equilibra-se naquela doce corda da “comédia romântica”. Ou seja, um humor com pitadas de romantismo. Através disso, os escritores, inclusive, abordaram temas espinhosos e permeados por preconceitos, especialmente na sociedade americana, como casamento e adoção de crianças por casais do mesmo sexo, uso de entorpecentes não regulamentados, barriga de aluguel, etc., em alguns casos dando a sua contribuição progressista, em outras e bem mais raras, afirmando o olhar conservador da sociedade, e, claro, de quem o escreve. O certo é que, mesmo com o desgaste natural do tempo, o enredo soube se reciclar, calcado sempre no incrível talento dos atores para encarnarem aquelas personagens.

4 – Poder de identificação

Em suma, esta categoria é a congregação de todas as outras citadas acima. Pois depende da composição das personagens, da fórmula narrativa e da construção do enredo. A identificação vem, em primeiro lugar, pelas personagens, pela maneira como foram concebidas e sublinhadas, com as características bem definidas, em que podemos colocar, como em potes, cada uma. E se pensarmos especificamente nos modos de humor elas também se encaixam. Chandler como o humor sarcástico, Joey como um humor físico, Ross, o melodramático, Phoebe, o absurdo, Mônica, o histérico e, Rachel, um humor sensual, romântico, de conquista, quase um flerte. Há, certamente, sutilezas e camadas interpostas entre eles, em que podemos observar a ironia, o deboche, a inocência e o sacrilégio. Esse texto, que aborda cada tipo de humor e personagem, é ancorado pelas situações cotidianas. Aí, ocorre a identificação no campo concreto, do tipo “já passei por isso e agi assim”, ou o contrário, com a perspectiva de como seria. Afinal de contas, como coloca o escritor tcheco Milan Kundera, autor de “A Insustentável Leveza do Ser”, o romance não é “uma confissão do autor, mas uma exploração das possibilidades humanas”. Daí por que permitimos nos identificar com situações que não aconteceram: pelo sonho, a fantasia e a imaginação próprias das construções artísticas. 


5 – Sorte

Esse é o aspecto que escapa a qualquer análise e por isso mesmo é essencial. Afinal de contas, há que existir algo de lúdico nessas criações. Por mais que almeje a uma cultura de massa, e especificamente nisto não se identifica demérito, “Friends” traz um riso de situações inusitadas, cuja obviedade do previsível é superada pela maneira, a forma, a estética deste riso. São muitos os que falam que o humor é uma questão de respiração. A sorte, por outro lado, é tão impalpável quanto o ar, mas está por todos os lados. Há os que a enxergam, os que duvidam de sua existência e os que afirmam que essa percepção é sandice. Mas o fato daquelas pessoas terem se encontrado naquele momento da história para dar vida à Ross, Chandler, Joey, Phoebe, Monica e Rachel, além das participações memoráveis de Gunther e Janice, é um mistério que a observação humana e sua simples capacidade não compreendem inteiramente. A sorte talvez também seja a régua que sublinha a união entre composição das personagens, fórmula narrativa, construção de enredo e poder de identificação, aquela cereja do bolo sem a qual não há tanto brilho e nem gosto igual. 

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