De todos os méritos do novo trabalho de Guinga, 67, um que de imediato salta aos ouvidos é a perenidade das canções. Embora o repertório contemple cinco músicas inéditas e nove regravações, todas elas soam no tempo da permanência.

O que há de clássico na concepção dos arranjos feitos para os quatro instrumentos de corda do Quarteto Carlos Gomes (dois violinos, uma viola e um violoncelo) aparece na própria construção melódica de Guinga, autor onipresente nas 13 faixas de “Avenida Atlântica”, cujo título apresenta uma das novidades, parceria com Thiago Amud que passeia pelo universo sonoro e sentimental do músico, onde ele interpela: “Tudo em você me inebria/ deve ser o vinho/ deve ser o mar/ tudo na praia vazia”.

Talvez somente Guinga e Jards Macalé sejam capazes de cantar as próprias dores com tamanha propriedade na música brasileira, a partir de suas vozes bucólicas e remissivas. Logo, as metáforas criadas pelos parceiros Aldir Blanc (em “Odalisca”), Paulo César Pinheiro (nesta versão de “Saci” com nova introdução), e, sobretudo, na música “Meu Pai”, com letra do próprio Guinga, têm seu poder de transposição para uma paisagem interna reforçado.

Pois a música de Guinga, refletida em imagens externas, é feita para introspecção.

Faixas. No saboroso exercício de se deter com a necessária calma sobre cada uma das canções, expande-se um universo de inventividade e citações. Antes mesmo de ler a alcunha, o ouvinte se verá imerso no universo mudo e delicado de Charlie Chaplin, o eterno Carlitos, vagabundo de coração doce e atrapalhado, em “Chapliniana”, num sutil casamento da música erudita com a popular, onde a primeira prevalece sem imposição.

Da mesma maneira, só que por outros caminhos, “Tom e Vinicius” não economiza na hora de expressar a magnitude da obra dos dois homenageados, com um instrumental totalmente voltado para a emoção, sem jamais roçar a superficialidade ou conceder chances ao pieguismo.

A partir da suíte que enfileira “Capital”, “Casa de Villa” e “Henriquieto”, o músico demonstra sua habilidade em construir uma arquitetura que confere a todas as peças a unidade de um quebra-cabeças, onde o encaixe é dado não pela característica cronológica e, sim, pelo conteúdo.

“Canção da Impermanência”, “Domingo de Nazareth”, “Par Constante”, “Pucciniana” e as demais citadas pertencem a um só domínio: o de uma música cerebral nascida no seio do mais puro sentimento. Noutras palavras, Guinga jamais relega sua obra ao mero tecnicismo, mas a ornamenta com toda a força do primeiro impulso, depois submetido a um meticuloso aprimoramento sonoro.

Comemorações. Embora só tenha chegado agora, em 2017, às estantes e plataformas digitais, o novo álbum de Guinga surgiu para celebrar os 50 anos de estrada do violonista, responsável por proezas do nosso cancioneiro como “Bolero de Satã”, cantado lindamente por Elis Regina com Cauby Peixoto, e “Catavento e Girassol”, prenhe da poesia de Blanc. Provas de que o tempo, neste caso, é sinônimo de refinamento, como da uva o vinho e do trigo, o pão.