A partir de 2001, quando “Persépolis” começou a ser publicado na França, o universo dos quadrinhos ganhou mais robustez com a presença de autobiografias. O título trouxe o olhar da iraniana Marjane Satrapi, que, ao narrar a própria infância e a juventude, vivida durante o período da revolução islâmica em seu país, mostrou a possibilidade do segmento alcançar novos estratos acolhendo relatos pessoais. A publicação, que depois inspirou também uma animação de mesmo nome, em 2007, conquistou grande sucesso e abriu caminho para outras em circulação no presente.

Neste ano, por exemplo, veio a público, pela editora Intrínseca, o primeiro volume da trilogia “O Árabe do Futuro: Uma Juventude no Oriente Médio”, de Riad Sattouf. Nesse, ele revisita as memórias de quando era criança e transitava entre a Líbia e a Síria, até radicar-se na França. Outro recente é “Uma Metamorfose Iraniana”, do cartunista e ilustrador iraniano Mana Neyestani, que saiu há dois meses, pela editora Nemo. Neyestani narra, no título, seu embate com o governo totalitário do Irã, lugar que deixou para viver na Malásia entre 2007 e 2010, antes de permanecer na França.

Aliado a esses, a reportagem em quadrinhos “O Mundo de Aisha”, do italiano Ugo Bertotti, baseada em fotografias e entrevistas feitas pela jornalista Agnes Montanari com mulheres do Iêmen, também publicada agora pela Nemo, vêm acrescentando abordagens sobre aspectos culturais, políticos e sociais de algumas nações do Oriente Médio.

Embora o volume dessas criações não seja tão grande quanto o de vertentes mais comerciais, como as revistas de super-heróis norte-americanas ou os mangás japoneses, os trabalhos que enquadram cenários habitados por populações de origem árabe estão mantendo a sua presença no mercado editorial. Para a quadrinista Ana Luiza Koehler, residente em Porto Alegre e cocuradora do Festival Internacional de Quadrinhos, cuja nona edição acontecerá em novembro, em Belo Horizonte, o panorama percebido no Brasil reflete um movimento que na Europa vem se notando desde a década passada.

“Eu trabalhei como desenhista para o mercado franco-belga, de 2006 a 2011, e logo os primeiros dois trabalhos que eu peguei tinham como pano de fundo a cultura árabe. Pela proximidade do continente europeu com aqueles outros países, isso também se justifica. Tem havido, ao meu ver, uma produção bem significativa desse tipo de conteúdo e que, inclusive, questiona as relações entre a cultura ocidental e oriental ou aborda os diálogos entre a tradição judaica e a árabe”, afirma Ana Luiza.

Para a jornalista Marília Noleto Gomes, de Goiânia, a partir de 2010, a eclosão de diversos protestos em países do Oriente Médio e do Norte da África, que ficaram conhecidas como Primavera Árabe, também contribuíram para que quadrinhos com narrativas centradas nessas regiões tenham ganhado impulso.

“Eu vejo uma maior visibilidade da cultura árabe na produção em HQ atual, e o interessante é perceber que esse movimento ocorre justamente após intensas manifestações políticas na região do Oriente Médio, como a Primavera Árabe. O quadrinho, assim como a charge, é uma linguagem muito atrelada ao processo de politização e contestação de qualquer ordem”, observa Marília.

“O Paraíso de Zahra” (2012), de Amir e Khalil, é um título que justamente mira esses acontecimentos. A obra, apesar de apresentar uma trama fictícia, a situa durante a leva de reações da população do Irã, que foi às ruas após ter sido divulgada a reeleição, suspeita de fraude, do presidente Mahmoud Ahmadinejad, em 2009. Ao dar atenção ao desaparecimento de um jovem chamado Mehdi, o quadrinho sublinha os dramas e as dores provocadas pelos abusos do autoritarismo.

Gomes frisa que, na trajetória dos trabalhos mais críticos, vale lembrar a importância de Joe Sacco, na ativa desde a década de 90.

“É preciso ter em mente que tudo isso que vemos hoje não é de agora. Um grande precursor foi Joe Sacco, que acabou abrindo as portas para outros autores e para a formação de um público interessado nas histórias do mundo árabe”, diz.

O cartunista brasileiro Carlos Latuff, no entanto, pondera que criações como as de Sacco não encontram similar atualmente. “Joe Sacco é uma espécie de filho único do trabalho que ele faz. Existem outros tão bons quanto, mas eles não chegam até nós, porque o mercado não se interessa por livros que questionam, por exemplo, o papel de Israel no conflito da Palestina”, opina Latuff.

Da expressão individual aos retratos místicos ou políticos

No conjunto de obras que abordam a cultura árabe, atualmente são percebidas motivações e objetivos distintos. O pesquisador fluminense Lucas Melo nota, inclusive, reflexos de duas principais vertentes. “Livros, como o ‘Persépolis’, se baseiam na experiência pessoal, se aproximando de uma tradição europeia de quadrinhos autorais. Já ‘Habibi’, do norte-americano Craig Thompson, por exemplo, constrói uma abordagem do universo árabe e islâmico a partir de uma visão mística que os ocidentais têm daquele povo”, compara Lucas Melo.

Arnaud Vin, editor da Nemo, ainda identifica nos livros o interesse pela denúncia. “Algumas histórias são uma forma de denunciar qualquer extremismo ou os abusos de poder cometidos por um regime religioso ou político”, acrescenta Vin.

Versões
Além da adaptação para o cinema do quadrinho “Persépolis”, outro que também já ganhou as telas foi a HQ “O Gato do Rabino”, de Joann Sfar. Ele mesmo dirigiu a animação concebida a partir da história dividida em cinco volumes. Bem recebido pelo público e pela crítica, o filme conquistou dois prêmios máximos nos festivais César e no Internacional de Animação de Annecy.

Nas livrarias
Lançamentos recentes:

FOTO: Editora Nemo/divulgação
01
 

“Uma Metamorfose Iraniana”
Autor: Mana Neyestani
Páginas: 208
Editora: Nemo
Quanto: R$ 39,90

“O Mundo de Aisha – A Revolução Silenciosa das Mulheres no Iêmen”
Autor: Ugo Bertotti
Páginas: 114
Editora: Nemo
Quanto: R$ 39,90

“O Árabe do Futuro: Uma Juventude no Oriente”
Autor: Riad Sattouf*
Páginas: 160
Editora: Intrínseca
Quanto: R$ 39,90 e R$ 24,90 (e-book)

*Riad Sattouf contribuiu para o jornal satírico “Charlie Hebdo”, entre 2004 e 2014. A publicação ganhou atenção mundial neste ano após ser alvo de um ataque que resultou em 12 mortes,