Se pouca gente conhece a música “Gracias a La Vida” na voz do estilista Clodovil Hernandes (1937- 2009) – que a interpretou na peça “Eu & Ela” em 2006 –, é possível que muitos se lembrem da gravação feita por Elis Regina (1945- 1982) em 1976 para o álbum “Falso Brilhante”. Pela primeira vez, Alcione, 69, registra a canção folclórica da chilena Violeta Parra (1917- 1967), no show de lançamento do CD e DVD “Boleros”, que ela apresenta nesta quinta-feira (29) em Belo Horizonte, às 21h, no Palácio das Artes.
“O brasileiro e o sul-americano, de uma maneira geral, tem essa coisa latina de ser um povo apaixonado. Por isso nos identificamos com o ritmo e as letras dos boleros, porque elas têm essa temperatura quente. Quanto a mim, sempre ouvi, desde menina, a Núbia Lafayette, a Angela Maria, o Nat King Cole. ‘Devolva-me’, de Anísio Silva, foi fatal para mim”, entrega Alcione, que no espetáculo, diferentemente do álbum, entremeia boleros com outros gêneros para privilegiar os seus maiores êxitos, casos de “Estranha Loucura”, “A Loba”, “Gostoso Veneno” e “Meu Ébano”.
Para completar, a apresentação recebeu uma concepção cênica que a divide em quatro blocos, referentes às estações do ano, notadamente primavera, verão, outono e inverno, e que serão costuradas por poesias de Elisa Lucinda, ora recitadas por Alcione, outrora pela voz em off da autora dos versos. “Foi tudo uma ideia da minha irmã e produtora Solange Nazareth, para abrilhantar o show e compor melhor toda essa história, de modo que o público seja fascinado por todos esses estímulos que vamos levar a ele”, considera.
Romântica. Como não poderia deixar de ser, algumas das músicas do estilo surgido em Cuba no ano de 1883 serão interpretadas por Alcione na língua de origem, ou seja, o espanhol. Em português, fora os clássicos de Herivelto Martins, Fátima Guedes, Flávio Venturini e da dupla João Bosco e Aldir Blanc, Alcione dará voz a três inéditas, “Quem Dera” (Júlio Alves), “Amor, Amigo” (Roberta Miranda) e “A Paixão de D’Artagnan” (Altay Veloso), gravada para o DVD com a participação de Alexandre Pires.
A maioria das canções, no entanto, mantém a marca registrada da intérprete: o romantismo. “Minhas referências são Maria Bethânia, Clara Nunes, Elizeth Cardoso, Angela Ro Ro, Dalva de Oliveira, Carmen Costa, todas elas ícones da música brasileira de todos os tempos. Agora, você quer saber o porquê? Por que elas cantam com o coração, e isso não morre nunca”, elogia a entrevistada. Prestes a completar 70 anos em novembro, a apresentação também celebra os 45 anos de uma carreira fonográfica iniciada em 1972 com a gravação do compacto que trazia de um lado “Figa de Guiné”, da dupla Nei Lopes e Reginaldo Bessa, e do outro “O Sonho Acabou”, lançada no mesmo ano por seu autor, Gilberto Gil, no disco “Expresso 2222”. As duas canções, aliás, foram relançadas no CD “Sabiá Marrom – O Samba Raro de Alcione”, produzido por Rodrigo Faour em 2010, junto a outras pérolas. “O samba ocupa o trono do meu coração. Além disso, ele é o ritmo que embala o Carnaval, a maior festa popular do mundo. E este ano o gênero, que é um dos nossos principais cartões postais, completa cem anos. Centenário que será comemorado também durante o ‘Rock In Rio’ em uma homenagem especial da qual terei a honra de fazer parte”, ressalta Alcione, que sobe ao palco no primeiro dia do evento, 15 de setembro, ao lado de Martinho da Vila, Monarco, Criolo, Roberta Sá, Jorge Aragão, Mart’nália e o grupo Jongo da Serrinha. “São todos nomes inquestionáveis, e ainda temos muita gente tarimbada nesse estilo, como a Elza Soares, o Arlindo Cruz, o Zeca Pagodinho, a Beth Carvalho”, enumera Alcione, que garante cantar, tanto hoje, quanto no Rock In Rio, a música “Não Deixe o Samba Morrer”, dos baianos Aloísio e Edson Conceição, lançado pela Marrom em seu primeiro LP, “A Voz do Samba”, em 1975.
Posteriormente, a cantora bisou o sucesso da música numa regravação em dueto com Cássia Eller (1962-2001), para o álbum “Celebração”, de 1998, que lhe valeu “Disco de Ouro” pelas mais de 40 mil cópias vendidas. Passado tanto tempo de estrada, ela aproveita para refletir o momento. “A vida mudou porque ficou mais corrida, muito trabalho e responsabilidades. Mas, no fim das contas, tudo valeu a pena. A Alcione é sempre esta, aquela, múltipla, e, principalmente a menina de São Luís do Maranhão, que jamais saiu de mim e nem sairá”, garante a intérprete.
Presente
Artista reflete sobre momento da cultura e elege o verso favorito
O nome de batismo, Alcione, foi inspirado na protagonista do romance espírita “Renúncia”, psicografado por Chico Xavier (1910-2002), já o apelido se alastrou graças a um amigo que, com saudades da namorada, pedia que ela cantasse músicas românticas e, à medida que se sentia mais próximo da cantora, passou a chamá-la pelo nome carinhoso dado à amada: “Marrom”. Formada professora primária em sua cidade natal, lecionou por dois anos, até que abraçou a música em definitivo. “Música é uma herança do meu pai, que era maestro, compositor e repentista. Decidi ser cantora ainda menina. Cantava em festas de colégio, para os amigos, no banheiro, onde dava”.
Ao contrário do que pensam alguns, para ela, o momento atual da cultura não é muito diferente. “A arte sempre foi relegada ao segundo plano, o que é lamentável porque a cultura é parte importante na identidade de qualquer país ou povo. Mas sempre esteve meio à margem, vide a situação em que se encontram o Municipal do Rio, e milhares de outras casas de cultura e espetáculos espalhadas pelo Brasil, sem os incentivos necessários”, lamenta. Sobre os cantores da nova geração, ou daquela posterior à sua, cita com facilidade o seu favorito, com apenas uma palavra. “Lenine”. E revela o verso que se destaca na sua trajetória: “Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”.
Agenda
O quê. Show “Boleros”, de Alcione
Quando. Quinta-feira (29), às 21h
Onde. Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, centro, 3236-7400)
Quanto. De R$ 40 a R$ 180