Parecia quase certo. O sul-coreano “Parasita”, de Bong Joon-Ho, levaria o Oscar de melhor filme estrangeiro, mas enfrentaria um páreo duro nas outras categorias às quais era indicado, dado que a Academia costuma privilegiar trabalhos sobre ela mesma (“Era Uma Vez em... Hollywood”) ou filmes de guerra (“1917”). Como se sabe, não foi o que aconteceu anteontem. “Parasita” levou, sim, o Oscar de filme internacional, bem como roteiro, diretor e, não bastasse, o cobiçado troféu de melhor filme, na primeiríssima vez em que um filme falado em outra língua que não o inglês faturou a categoria.
 
O Oscar 2020 coroa uma estrada que já vem sendo pavimentada há algum tempo pela produção audiovisual da Coreia do Sul – para a documentarista e crítica de cinema Flávia Guerra, desde “Oldboy” (2003), de Park Chan-Wook, que arrebanhou prêmios festivais afora: “Ali se deu um estalo no público ocidental, em particular no norte-americano, tanto que teve um remake (2013, por Spike Lee)”. Flávia, aliás, voltou recentemente do Festival de Sundance, que teve como vencedor “Minari”, do coreano-americano Lee Isaac Chung. “Uma vitória muito sintomática, inclusive por ser uma produção da Plan B, do Brad Pitt”, acrescenta, dando a dimensão dos holofotes que o cinema sul-coreano vem recebendo.
 
Os fatores para esse crescimento são diversos e passam, naturalmente, pela qualidade. Para Frederico Vieira, analista da Gerência de Cultura do Sesc MG, a variedade dos filmes feitos naquele país chama atenção. “Não é um cinema monotemático – pelo contrário. Vai da fantasia ao cotidiano”, afirma.
 
Não por acaso, o Sesc promoveu, recentemente, uma mostra dedicada ao diretor Hong Sang-Soo, um dos mais celebrados do país – e foi sucesso de público. “As pessoas abraçaram a ideia, muita gente já acompanhava o cinema sul-coreano. O Oscar foi só a consolidação dessa potência”, afirma Vieira. 
 
Flávia Guerra, por sua vez, compara o cinema coreano a uma iguaria típica de lá, o kimchi. “Ardido e bem-temperado, não de tons pastel”. Young Sang Kwon, diretor do Centro Cultural Coreano, em SP, explana. “Uma característica dos filmes coreanos, na comparação aos blockbusters de Hollywood, é que eles trabalham algumas emoções primitivas, como vingança, discriminação e afeto. E a produção atual espelha também a criatividade traduzida em diversas formas, seja suspense ou humor negro”.
 
Por trás do sucesso de “Parasita</CW><CW-30>”, está também uma agressiva política pública de apoio ao setor audiovisual, que oferece diversas linhas de financiamento a produtores e exibidores. “A vitória de ‘Parasita’ no Oscar não é uma surpresa, já que a Coreia do Sul mantém uma política de apoio e de exportação consistente desde os anos 90”, conta o presidente do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes (Idea), Nichollas Alem. 
 
Flávia Guerra corrobora: “Outro dia, em um bar, uma pessoa, que não é da área, disse que, após ‘Parasita’, resolveu assistir a tudo que é produção coreana. Ironizei: ‘Viu o que é um país investir em arte?’ (risos). Resulta, por exemplo, na Palma de Ouro (do Festival de Cannes, em 2019)”. 
 
Mas nem sempre foi assim. A guinada veio com “O Parque dos Dinossauros”, em 1993. À época, o filme ocupou todas as salas por três meses, o que gerou uma revisão do setor por parte do governo sul-coreano. Hoje, 57% dos filmes exibidos lá são feitos no próprio país, e o tempo mínimo deles em exibição é de 146 dias. “É um dos países que tem cotas mais agressivas para o seu cinema”, conta Alem. “Proporcionalmente, o acesso ao cinema lá é muito maior. O Brasil tinha, em 2017, 3.200 salas de cinema, enquanto a Coreia do Sul tinha 2.500, mas com um quarto da nossa população”, avalia. 
 
Para o analista, vamos ver cada vez mais filmes sul-coreanos conquistando prêmios e público. “Eles pensam muito em termos globais. Além do cinema, temos o k-pop e empresas como a Samsung. Entendem que estão lidando com um produto extremamente globalizado, que é o audiovisual, e pensam em mercados que vão além dos EUA e da Europa, como a China”, detalha Alem. 
 
Confira a seguir, uma entrevista com o professor-doutor Jack Brandão, doutor em Literatura pela USP e diretor do Centro de Estudos Imagéticos Condes-Fotós Imago LAB

O cinema coreano vem, de fato, como estamos percebendo aqui, no Brasil, registrando um crescimento em termos não só quantitativos como qualitativo?
Realmente, nós estamos verificando um crescimento exponencial do cinema coreano, mas não só do cinema em si, mas também da própria televisão, das séries coreanas, como vemos na Netflix. Mas cabe ressaltar que esse crescimento não é unilateral, ou seja, não se deve apenas ao cinema, à televisão, mas também à música. A música jovem coreana já está há alguns anos na mídia brasileira, muitos jovens seguem grupos coreanos de música. Mesmo que eles não entendam aquilo que eles falam, seguem os trejeitos desses grupos. E não poderia ser diferente com "Parasita".  A gente pode dizer que ele é o ápice, o coroamento dessa busca, pelos coreanos, de se superar. Não se pode esquecer que a península coreana sofreu uma sangrenta luta fraticidade durante muito tempo, a Guerra da Coreia, e que levou à divisão do país, e de uma forma ou de outra,  "Parasita" acaba tocando neste ponto sob um viés um pouco diferente. Quando nós vemos a família que mora no porão, é importante lembrarmos que esses porões foram construídos exatamente para que? Para servir de abrigo no caso de um ataque que se esperava da Coreia do Norte, a ponto de ser proibido alugar, morar nesses lugares, mas com o boom da Coreia do Sul, e a escassez de habitação, isso acaba levando o próprio governo a permitir que se sub-locassem esses lugares, e normalmente os mais pobres se dirigiam a eles. Então,  o filme mostra de forma clara também a divisão que há na sociedade, e algo também que é muito importante que é a própria questão da desigualdade social. Embora a Coreia do Sul seja hoje um país extremamente rico, há muitos pobres também - bem, isso é algo inerente ao próprio capitalismo. Então há, dentro dessa perspectiva, voltando agora mais à questão do cinema, sim, um grande crescimento, e não só na quantidade de filmes. Dizem que a Coreia é um dos locais do mundo em que o seu próprio cinema  é mais visto que o estrangeiro, algo parecido podemos afirmar no Brasil no caso da música, pois ela ainda é, nos limites do país, a mais ouvida, assim como na Coreia. Podemos lembrar também que estamos praticamente chegando ao centenário do cinema coreano - e ele é brindado com uma obra como "Parasita".

A que esse fenômeno pode ser creditado?
Algo muito complicado creditar a alguém o fenômeno que acontece na Coreia do Sul. Penso que esse fenômeno, esse surgimento, é o próprio amadurecimento da Coreia enquanto nação, e penso de modo especial após a quebra, a fratura, o rompimento dessa situação de miséria do pós-guerra. O Japão também teve um período pós-guerra, muito traumático, até se transformar numa potência. Se não me falha a memória, nos anos 90, havia tanto dinheiro no Japão que os japoneses compravam bens culturais dos EUA, caso da Sony, comprada no momento em que a própria indústria americana estava em decadência. A Coreia podemos pensar que pode haver algo parecido com isso. Cicatrizadas as feridas, criou-se a possibilidade de buscar um próprio  nacionalismo, e se busca mostrar a eles próprios a cultura, e por que não, aos outros. Mas, bem, não se faz essa busca de mostrar aos outros de forma caricata. Podemos ser levados a acreditar que seja feito isso com o filme.  O "Parasita" é muito mais que isso. Podemos creditar não apenas a um só motivo, a um momento, mas decorrência de vários aspectos que levaram o povo coreano, de modo especial o diretor,  a canalizar toda essa situação a qual a Coreia vive hoje de uma forma esplêndia. Não à toa ganhou vários Oscars.

Esse crescimento está encontrando vazão mundo afora, com os filmes despertando interesse de outros países?

Realmente, todas as vezes que temos uma produção como "Parasita", que leva luz, vira os holofotes para uma realidade aparentemente diferente, as pessoas são levadas a buscar,  a querer conhecer. Óbvio, se a gente parar para pensar, o tema, ali, não difere muito da realidade que vemos hoje no Brasil, ou México, Argentina e mesmo EUA. Apesar de tudo, somos seres humanos e vivemos de modo especial sob o regime capitalisma, em que há uma grande diferença de classes. Quando vemos a mansão da família rica com todas as benesses que a Coreia conseguiu construir, as benesses que aquele povo conseguiu construir, de outro lado, temos a família pobre, quatro pessoas na miséria,  no porão, buscando não só viver, mas sobreviver, num mundo caótico. A ponto de diante da fumegação, da prefeitura pulverizar inseticida,  eles deixarem abrir as janelas para matar seus carrapatos. Então, temos um país que nos mostra uma realidade comum a uma sociedade capitalista como um todo, mesmo estando do outro lado do mundo. E aqui não é se o capitalismo é certo, o comunismo errado, não há isso. É uma visão simplesmente humana colocada na tela, então é óbvio que mais que despertar interesse para a Coreia, de modo especial, nós temos uma tomada de consciência em busca de outras produções. Isso é importante. Deveríamos sair da roda que gira em torno de Hollywood. Temos outro exemplo, Bollywood. Praticamente não há expressão no Brasil. E é importante conhecer outras visões do mundo, para que possamos criar uma consciência coletiva que é o que muitas vezes falta no nosso mundo.

Quais os diretores que estão se destacando e qual o tipo de filme tem sido mais produzido?

Como exemplo, vou citar mesmo o Bong Joon-ho, um cineasta que  sempre procurou trilhar vários caminhos, não importa se é um filme distópico ou de terror, de horror. Ele busca trilhar caminhos novos. Que pode mesclar o drama, a comédia, o sarcasmo ou a própria desgraça humana. Isso mostra claramente pra mim... Quando tínhamos o teatro grego, havia diferença grande entre a tragédia e a comédia, entre a forma, a divisão que havia entre cada um desses momentos artísticos. Lá pelo séc. 17 é que começa o início dessa mistura. E  temos hoje, o diretor de "Parasita" consegue trabalhar essa mistura de estilos de forma magistral.  Diferente de "1917", filme belíssimo, e não só... A própria estrutura nos chama atenção, mas é extremamente previsível. E a previsibilidade faz com que muitas vezes nós nos tornemos muitas vezes indifentes aos filmes. Quando pensamos em literatura, por exemplo. Vamos dar exemplo do romance, onde sempre temos uma busca, uma continuidade, e sempre esperamos desfecho de forma pré-determinada anteriormente. Agora, quando temos um autor, um narrador que rompe, ele cria um efeito de estranhamento no modelo do Brecht, por exemplo, lá na Alemanha, e isso surpreende o leitor. E essa surpresa, se é desagradável num primeiro momento, num segundo, é excitante. Você passa a querer saber o que vem depois. O que mais? E Boon Joon-ho faz isso de forma muito magistral. Não à toa, os grandes aplausos da Academia. Na premiação, vimos um exemplo claro. Quando tinha acabado o tempo de falar, os próprios grandes de Hollywood pediram, em pé, que ele continuasse. Ou seja, o diferente, o estranho, o estranhamento faz muito bem para nós. E quando há essa continuidade de rompimento, há um problema: não vamos mais aceitar a mesmice, o continuísmo.