O pernambucano Marcelino Freire fala com exclusividade a O TEMPO sobre os rumos da literatura contemporânea e sobre a função primordial do escritor no cenário político atual e faz um alerta: “Teremos que redescobrir o Brasil a partir de hoje”, afirmou.
Qual é o cenário da literatura contemporânea brasileira?
Estou respondendo a essa questão na manhã do dia 29 de outubro, momento em que o Brasil sinaliza um destino à extrema direita. Teremos que redescobrir o Brasil a partir de hoje. Tenho como aliados literários muitos escritores que já lutam, entrincheirados, na periferia de São Paulo. Ali é onde, há mais de dez anos, nasceu a grande novidade de nossa literatura: essa feita no corpo a corpo, dentro dos bares, circulando pelas ruas, com seus próprios selos editorais. Vou ficar ainda mais perto dessa literatura viva.
Numa de suas entrevistas, você disse que “a literatura é sempre essa viagem, de carona. É esse passeio público. Sem saber para onde vamos. Em direção ao outro, muito além de você e de mim, este movimento sem fim”. Fale mais sobre isso. Falo assim em função do título do meu “Bagageiro”. Esse título faz referência a bagageiro de bicicleta, único veículo que sei conduzir. Existe veículo mais poético?
Ler um livro é como andar de bicicleta. É nessa velocidade que lemos, pulando páginas, passeando pelo livro. Acho que ela é, sem dúvida, o veículo mais democrático que eu conheço. Toda bicicleta é comunista.
Como foi feita a reunião dos textos de “Bagageiro”?
Faz tempo que eu venho anotando encontros que eu tive com escritores como Manoel de Barros, Millôr Fernandes, João Gilberto Noll. E faz tempo que anoto frases que eu vou falando em minhas oficinas. Eu tinha também uma seção em meu blog chamada “Ensaios de Improviso”. Resolvi aí fazer um livro misturando isso tudo.
Quando começa um livro. E quando você sabe que ele está pronto?
Um livro está pronto quando ele me provoca, quando ele me emociona, quando ele me parece relevante para nossa atual situação. Não é um livro morno. É tudo o que eu gosto em um livro: uma temperatura alta, um tapa a cada página, um grito no ar.
Como você enxerga o cenário político e social do país?
No dia 28 de outubro, inaugurei um blog chamado “19:21 – Hora Marcada”. Foi a exata hora em que o Brasil voltou no tempo e elegeu seu “Messias”. Todo dia escreverei sobre esse cenário, para mim, desolador. Vou monitorar cada minuto deste novo governo antigo. Ainda estou tentando entender o que aconteceu. É a mesma dor que eu senti quando minha mãe morreu. Uma dor que não passa. O desaparecimento da nossa mãe gentil.
O que há do Nordeste em seu estilo? O que há de São Paulo nos seus textos?
Eu sou Nordeste sempre. A minha linguagem tem sotaque, ritmo sertanejo. E agora, então, depois dessas eleições, quero mesmo voltar para o Nordeste. O Nordeste é meu futuro país.
Qual a relevância dos prêmios literários na sua trajetória?
Gosto quando o prêmio dá um bom dinheiro. Nunca ganhei uma bolada de grana. Com o “Bagageiro”, então, vai ser impossível. Este livro vai ser inscrito na “falta de categoria”. Brincadeiras à parte, meu prêmio maior é conquistar um leitor, meu maior prêmio é emocionar.
Qual dos seus livros lhe deu mais trabalho? Qual foi o mais difícil de ser escrito?
Eu tenho dois romances escritos. E continuam lá na gaveta, encalacrados. O “Bagageiro” surgiu entre esses dois fracassos. E ele é lançado logo agora, dentro de uma nuvem esquizofrênica que paira pelo Brasil. “Voar é o que me põe de pé!”, escrevo isto no livro. O segredo é voar. Resistir escrevendo. Persistir escrevendo. Senão eu vou é enlouquecer.
Contos que não são contos, ensaios que não são ensaios
Marcelino Freire nasceu em 1967, em Sertânia, Pernambuco. O escritor acaba de lançar “Bagageiro”, pela editora José Olympio. Radicado em São Paulo desde 1991, é dele também “Angu de Sangue” (Ateliê Editorial, 2000); “Contos Negreiros” (editora Record, vencedor do prêmio Jabuti, em 2005); “Rasif” (editora Record, 2008) e “Nossos Ossos” (editora Record, vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, em 2013). Freire também coordena, desde 2003, oficinas literárias e já participou de diversas antologias no Brasil e no exterior.
Em “Bagageiro”, o pernambucano monta um mosaico intenso, ao mesmo tempo lírico e cômico. Dramas, aforismos, o bizarro da natureza humana, as idiossincrasias de cada personagem, comentários sobre livros e sobre a grandeza do teatro, a sordidez da política, tudo cabe nesse porta-malas feito de mágicas e improvisos. Freire aborda de um tudo do que a vida é feita. Dentro desse universo surgem comentários sobre a linguagem, a literatura, a poesia. Tudo, em todas as direções, no sem sentido que nos envolve.
“Bagageiro” é uma bela coletânea de pequenas histórias. O incerto serve de ponto de partida para os périplos e aventuras: “Minha pontuação de estimação é a interrogação. Mas não tenho muita certeza disto”, ele diz. “Pensarão que eu penso”, Freire ri.
Travestis, negros, favelados, garçons, pterossauros. A, digamos, técnica literária do escritor vai nesse sentido: “Meus personagens são as palavras. Eu costuro as palavras. Em permanente desalinhavo”. Freire dribla, foge com ginga e malandragem do texto “correto”, apurado, escorreito. Ele, aliás, certamente riria deste termo pomposo de plumas e pompas: a palavra escorreita. Austeridade, outro termo a se evitar, diria o pernambucano.
Os poetas alcançam a graça quando choram. Ou quando brincam. O contista, o escritor, o poeta Marcelino experimenta a literatura nesse sentido. Num dado momento do livro, ele sugere: “Não vista seus personagens como se vestisse bonecas”. Os personagens do livro são feitos de carne e osso, falam bobagens, escancaram suas verdades, as mais mentirosas verdades de que se tem notícia.
O escritor, que “tira a gravata para escrever”, preferiu a leveza das coisas conturbadas para rir com tudo e de si próprio. Freire criou um livro que prima pelo movimento, pelo sem rumo, por uma ciranda que envolve o leitor sem fórmulas, sem a pretensão do rigor acadêmico ou de qualquer tipo de rigidez.
O pernambucano entendeu que não se deve, nem se pode “arrumar” a bagunça. Antes, é possível – e imprescindível – aceitar a desordem, a zona do caos, e até mesmo contribuir nesse sentido. Marcelino Freire amplia com maestria a barafunda que nos cerca e simplesmente se diverte. Por fim, “Bagageiro” é um livro de ensaios que não são propriamente ensaios, é um livro de contos que não são contos. É literatura sendo, apenas, literatura – e das melhores.
“Bagageiro”
De Marcelino Freire
Editora José Olympio, 160 páginas, R$ 34,90