Em uma pesquisa empreendida pela escritora Ana Maria Gonçalves, autora de “Um Defeito de Cor”, ela entrevistou uma produtora de São Paulo que realiza seleção de elenco para cinema, a qual prefere não identificar. “Esta pessoa contou que, quando diretores ou roteiristas não especificam que o ator ou a atriz deva ser negro, naturalmente, um branco é chamado para o papel. Mesmo que não haja indicação que aponte para a questão racial do personagem. O racismo está tão entranhado que não se pensa na possibilidade de dar um papel a um não branco”, conta a escritora.
As entrevistas que Ana realizou mostram também outra dificuldade encontrada por atores negros. “Se ele é considerado bonito, também é excluído porque não se adequa à imagem estereotipada do negro”.
Ana dá esses exemplos para demonstrar como o racismo entremeia as ferramentas do fazer artístico, controladas, em maioria, por homens brancos. E, na literatura, seu território, não seria diferente. Ela aponta os estudos de Regina Dalcastagnè, professora da UnB que analisou os perfis de personagens dos romances brasileiros, publicados de 1990 a 2004 por três das maiores editoras brasileiras. Além de identificar que 84% dos autores são homens brancos de classe alta, 74% dos protagonistas são homens e 80% são brancos.
Os dados apontam também maior incidência de estrangeiros (25%) do que de negros brasileiros (7,9%). “Os números apontam para o lugar de fala dos escritores. Os negros, quando presentes na literatura, são os bandidos, os porteiros. Enquanto não houver mais negros falando da sua própria realidade, essa discrepância vai continuar”
Para a pesquisadora Leda Martins, se existe uma ênfase na valorização das criações de artistas brancos, as representações e as narrativas que ganham espaço também merecem ser avaliadas. “As personagens que são desenhadas e os temas abordados advêm, em grande parte, de um universo que exclui. Em geral, a gente observa que a participação do negro na indústria cinematográfica norte-americana é maior que no Brasil, especialmente, se considerarmos que 53% da população brasileira se autonomeou negra no último censo. A diversidade que funda a nossa sociedade não se estende às produções artísticas. E o mesmo acontece no teatro, na teledramaturgia e também fora dos campos artísticos como os telejornais, as propagandas. Somos exceções nesse meio e, quando aparecemos, estamos sempre em papeis estereotípicos ou secundários”, afirma.
Foi pensando na falta de representatividade ou nas distorções da representação da história do negro que a jornalista Etiene Martins criou no ano passado o jornal “Afronta”. “É um espaço para contarmos nossa história. Se olharmos a mídia e as produções brasileiras, vemos um país que não é negro, o que não condiz com o real. A nossa história é sempre falada por uma boca que não é a nossa, por isso, é importante que o negro conte e fale sobre sua própria vida”.
É nesse sentido que o movimento negro busca por ações afirmativas para os mecanismos de incentivo à produção cultural, fadados aos vícios que representam os editais e as leis.
“O processo de exclusão do negro não foi um processo natural, foi forjado em cima de uma branquitude superior. Por isso, estamos brigando por cotas de minorias nesses processos de editais para que seus projetos culturais e artísticos sejam realizados. Esses mecanismos artificiais são necessários para a construção de um equilíbrio social”, diz Ana Gonçalves.
Em uma pesquisa para a Fundação Cultural Palmares, enquanto presidente em 2013, Hilton Cobra identificou que, do orçamento de R$ 5,35 bilhões do Ministério da Cultura, apenas R$ 300 milhões eram consumidos para produção da arte e da cultura negras. “Não conseguimos conquistas nessa luta insana sem a instituição de políticas de cotas que tem sido a única forma de galgar recursos e espaços. Não existe outra forma para arte negra”, declara Cobra, diretor da Cia. dos Comuns. (JA)