Uma das grandes atrações da temporada 2023 da Fundação Clóvis Salgado (FCS), a ópera Matraga, baseada no conto “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de João Guimarães Rosa, publicado originalmente no livro “Sagarana”, de 1946, estreia nesta quarta-feira (25), no Grande Teatro Cemig Palácio das Artes, em Belo Horizonte, reunindo música, teatro, dança e literatura em uma poderosa homenagem ao canônico escritor mineiro e ao universo sertanejo representado em sua obra. Esta será a primeira vez que o conjunto de corpos artísticos da FCS adapta uma das mais emblemáticas histórias da literatura brasileira em formato operístico, levando para um mesmo palco cerca de 200 artistas que integram a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, o Coral Lírico de Minas Gerais e a Cia. de Dança Palácio das Artes. 

O espetáculo, montado a partir da partitura e do libreto de Rufo Herrera, compositor argentino radicado no Brasil desde 1963, que completou 90 anos neste 2023, sendo considerado um dos maiores compositores contemporâneos do país, conta a trajetória de um homem violento e arrogante, “duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato”, que perde tudo o que tem e busca a redenção em um lugar distante e hostil. Em sua jornada, ele enfrenta tentações, provações e conflitos que o levam a questionar sua fé e seu destino.  

Assim como no conto, a montagem enfatiza duas constantes no sertão rosiano: a violência e a crença. A produção, portanto, é atravessada por temas como a redenção do crime, o castigo, a penitência, o perdão e o destino – sempre espiados a partir do ponto de vista do catolicismo popular: “Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa mais a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria… Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”. 

“Interpretar esse personagem foi uma experiência muito forte e muito gostosa de fazer, mas também muito desafiadora”, garante o ator Leonardo Fernandes, que vive o protagonista do espetáculo. “Augusto Matraga é um personagem que olha para as próprias sombras, que revê toda a trajetória que ele fez como ser humano até então e que tenta jogar uma luz sobre ela. Mas ele nem sempre consegue. E a ópera é sobre isso, sobre o conflito de um ser humano que quer mudar o tempo todo e que procura a redenção”, opina. 

Mineiridade 

Antes da estreia oficial, nesta quarta-feira (25), uma apresentação, em formato reduzido e para convidados, foi realizada no domingo (22) na Gruta do Maquiné, em Cordisburgo, cidade natal de Guimarães Rosa localizada na região Central de Minas Gerais – um feito, aliás, celebrado por seu ineditismo. Na ocasião, durante coletiva de imprensa, Sérgio Rodrigues Reis, presidente da FCS, destacou que a montagem demarca uma mudança de perspectiva dos corpos artísticos da fundação no sentido de prestigiar obras representativas da mineiridade. 

“Nós temos um escritor genial, que é o João Guimarães Rosa, que criou uma obra universal a partir do sertão das Gerais. Temos uma ópera que é uma adaptação fiel e emocionante do conto ‘A Hora e a Vez de Augusto Matraga’, que é uma das obras-primas rosianas. Temos corpos artísticos que já deram provas de sua excelência. Então nós pensamos: por que não juntar tudo isso em um espetáculo único?”, assinala. 

A valorização de estéticas sertanejas e o mergulho em sonoridades e tradições culturais carregadas de regionalismo são características da montagem exaltada também pela maestrina Ligia Amadio, que assina a direção musical do projeto. Ela lembra que a ópera, ao ganhar forma, consegue mesclar, de forma muito orgânica, elementos da música erudita, popular e regional – uma premissa, aliás, já presente na partitura de Rufo Herrera. “Foi muito gratificante do ponto de vista artístico, pois nós fizemos uma obra muito mineira”, ressalta, classificando como maravilhosa a experiência de trabalhar com toda a equipe envolvida na empreitada, desde a direção artística até os corpos artísticos da fundação. 

O trabalho em equipe também foi exaltado pela diretora cênica Rita Clemente. “Construir essa dramaturgia, que une música, teatro e dança, exigiu muito trabalho, em um esforço que, felizmente, contou com a qualidade técnica dos corpos estáveis da Fundação Clóvis Salgado: a orquestra, o coral e o balé. Além disso, tivemos regentes e solistas de excelência para interpretar essa obra”, comenta, reconhecendo que, evidentemente, por ser algo tão grandioso, com cerca de duas centenas de artistas em cena, os desafios foram muitos – “até porque desafios são também parte do processo criativo”, pontua.  

Para ela, todos os naturais obstáculos foram sendo superados graças a um trabalho pautado pela união, alegria e inventividade. “Foi algo talvez muito incomum para uma ópera, formato que, geralmente, funciona de forma muito compartimentada. Nós, na contramão disso, ficamos muito juntos, trocando ideias e sugestões. Foi um espetáculo feito em equipe, em que todos tiveram uma participação muito ativa”, observa. 

Elenco e equipe 

Contando com a participação dos corpos artísticos da Fundação Clóvis Salgado (FSC), a ópera inclui, entre os solistas, a soprano Edna D’Oliveira, que vive Dionóra, a esposa infiel de Matraga, e o tenor Geilson Santos, que interpreta Quim, um recadeiro do protagonista. Já a narração fica por conta do ator Gilson de Barros, que dá voz ao universo rosiano, sendo acompanhado pelo violeiro Chico Lobo, que incorpora musicalidade popular e regional ao formato operístico. 

A maestrina Ligia Amadio, além de assinar a direção musical da produção, conduz a orquestra entre quarta-feira (25) e sábado (28). No domingo (29), a regência é de André Brant, maestro assistente da Sinfônica de Minas Gerais. A cenografia é de Miriam Menezes, que criou um ambiente rústico e simbólico para representar o sertão mineiro. Já os figurinos são de Sayonara Lopes, que buscou referências na cultura popular e na moda sertaneja. Alex Soares assume a direção coreográfica, explorando os movimentos corporais dos personagens em cenas de luta, dança e ritual. A preparação do coral foi feita por Hernán Sánchez, maestro titular do Coral Lírico. A direção geral é de Cláudia Malta, diretora artística da FCS, e a direção cênica, como já mencionado, é de Rita Clemente, atriz e diretora com vasta experiência em teatro e cinema. 

Obra-prima 

Último e mais emblemático conto do livro Sagarana, que marcou a estreia de João Guimarães Rosa na literatura, “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” é considerado pelo crítico Antonio Candido (1918-2017) como a obra-prima da publicação – “onde o autor entra em região quase épica de humanidade e cria um dos grandes tipos de nossa literatura, dentro do conto que será, daqui por diante, contado entre os dez ou doze mais perfeitos da língua”, anota. 

Não por outro motivo, essa história já foi adaptada para o cinema ao menos em duas ocasiões. A primeira delas, em 1965, pelas mãos do diretor Roberto Santos, que, pela produção, venceu o Festival de Brasília em 1966. Cinquenta anos depois, em 2015, a história voltou para as telonas sob a direção de Vinícius Coimbra, que venceu o Festival do Rio, antes do lançamento comercial, em 2011. 

SERVIÇO:
O quê.
Temporada de estreia de Matraga, a ópera em três atos de Rufo Herrera baseada na obra de João Guimarães Rosa 
Quando. De quarta-feira (25) a sábado (28), às 20h30. No domingo (29), às 19h
Onde. Grande Teatro Cemig Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, centro)
Quanto. A partir de R$ 25 (meia entrada, plateia superior). Ingressos disponíveis no site eventim.com.br e nas bilheterias do Palácio das Artes.