No ano que marca os dez anos da morte do arquiteto e designer Sergio Rodrigues (1927-2014), um dos principais representantes do design modernista brasileiro, célebre por suas contribuições para o reconhecimento mundial do mobiliário moderno nacional, novos projetos revisitam seu legado por diferentes prismas e reforçam o status de arte de suas criações.
Exemplo disso é a nova coleção da grife carioca Handred, lançada na última edição da São Paulo Fashion Week (SPFW) a partir de pesquisas no acervo de imagens do instituto responsável por cuidar do legado do designer. Outro acontecimento a reforçar esse movimento é o lançamento, no fim do ano passado, do livro “Sergio Rodrigues em Brasília 1956 - 1981”, que reúne nove textos de autores diversos, além de uma seleção de fotos históricas pouco vistas sobre as contribuições dele para os interiores de prédios emblemáticos da capital federal.
Nova coleção da grife Handred se inspira em Sergio Rodrigues
E, é claro, para além dessas novidades, as formas de Rodrigues e do movimento que ele tão bem representa seguem inspirando o colecionismo e guiando a decoração de interiores. Afinal, passados quase 80 anos desde o surgimento dos primeiros exemplares dessa vanguarda criativa, o mobiliário moderno brasileiro segue encantando, inclusive, gente que, nessa época, nem pensava em nascer. Caso da diretora de arte Mariel Dodd, que, aos 33 anos, tem pouco menos da metade da idade da mencionada Poltrona Mole, criada por Sérgio Rodrigues em 1957. Uma distância cronológica encurtada pela presença do item na casa de seu avô e, posteriormente, na casa de seus pais, Cláudia e Lúcio Dodd – casal à frente da loja-galeria Pé Palito - Vintage Decor, especializada em mobiliário colecionável do século 20.
“É algo que está nas minhas memórias de infância, sendo mais que um objeto de um designer, mas também um objeto de apego”, comenta, fazendo de sua relação com a peça uma alegoria de seu interesse pelo mobiliário moderno brasileiro. “A minha construção de relação com o garimpo vem muito dessa questão afetiva, de família mesmo. A minha referência de design, inclusive, vem muito dos garimpos do meu pai, que, com o tempo, foi se descobrindo um colecionador de objetos inusitados, que dificilmente encontramos por aí, e das escolhas de composição da minha mãe, que é artista plástica”, reforça.
Harmonia e identidade
Vivendo atualmente na torre horizontal do Conjunto Kubitschek – o Edifício JK, como é popularmente chamado –, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, Mariel Dodd costuma dizer que praticamente tudo nessa casa é garimpo vintage. “Recentemente fiz uma recapitulação da minha decoração, então fui garimpando item por item do que eu achava que fazia sentido”, explicou ela à reportagem enquanto detalhava cada uma de suas escolhas. No primeiro módulo do apartamento, que conjuga sala de jantar e de TV, ela harmoniza um sofá em acabamento de madeira e couro e uma poltrona em metal e lona, ambos produzidos pela Móveis Lafer – fábrica fundada em 1927 pelo arquiteto e desenhista industrial paulista Percival Lafer, cujas atividades foram descontinuadas em outubro de 2022, após nove décadas de sucessos.
Mariel Dodd, 33, em sua sala no Conjunto Governador Kubitschek
“Acho que a lona verde trouxe um despojamento para o ambiente, que era algo que eu buscava, que combina comigo”, reflete, lembrando que o sofá também já passou por reformas – “ele já trocou de cores duas cores antes de chegar a esse tom de caramelo, mais neutro”, lembra, concluindo se interessar não só pelo processo de busca dos itens, mas também pelo esforço de transformá-los de acordo com espaço e personalidade de cada um.
Ainda no primeiro módulo do apartamento, Mariel optou por um conjunto de mesas e cadeiras projetado por Charles e Ray Eames, dois figurões do design industrial americano do período do pós-guerra, cujas peças caíram no gosto dos brasileiros. “Eu estava conversando com amigos meus sobre como, às vezes, prefiro não restaurar as coisas que garimpo, como no caso dessa mesa. Preservei, nos pés dela, as marcas do tempo, texturas que trazem e contam um pouco da sua história”, reflete, acrescentando ter feito escolha semelhante no armário dos anos 50, feito em metal, madeira e vidro, também presente no espaço, que ainda acomoda objetos emblemáticos de diferentes décadas e nacionalidades – como espremedor de frutas cítricas Juicy Salif, criado pelo designer francês Philippe Starck e fabricado desde 1990, e um banquinho Mocho, peça bastante conhecida do carioca Sérgio Rodrigues.
Hi-lo
“Tem também itens que eu mesma fui garimpando, muitos dos quais sem assinatura, quando fui morar sozinha e comecei a ir em feirinhas de design”, recorda, enquanto mostra uma engenhosa mãozinha de plástico, que serve de porta-copos e, tal qual o personagem da Família Adams, “anda sozinha”. “Ela era usada em um bar. O ‘bartender’ colocava o copo, que ia ‘sozinho’ até o cliente no balcão”, conta ela, que faz escolhas alinhadas a um perfil de decoração conhecido como high low ou, simplesmente, “hi-lo”, sendo caracterizado pela combinação de peças sofisticadas e simples, antigas e contemporâneas.
Quarto de Conrado, filho de Mariel Dodd
A combinação entre objetos de autoria reconhecida e outras peças curiosas se repete nos outros cômodos da casa, como no quarto do filho de Mariel, o Conrado, de 3 anos. No ambiente, tematizado com motivos que remetem ao espaço sideral, uma escrivaninha baixa em metal, provavelmente dos anos 70, convive com uma bigorna projetada pelo designer Zanini de Zanine, filho do baiano José Zanine Caldas (1918-2001), um arquiteto e designer autodidata que deixou importante contribuição para o mobiliário brasileiro. E também há espaço para um boneco do filme “E.T. O Extraterrestre” (1982), de Steven Spielberg, que acompanha Mariel desde a adolescência.
Entre goteiras e cupins
Assim como na história de Mariel Dodd, o interesse do sanfoneiro Thiago Gazzinelli Haddad, 31, pelo universo do mobiliário moderno brasileiro também surge por influência de sua família. Mas, no caso dele, esse percurso foi mais tortuoso – diferentemente do traço certeiro dessa vertente do design.
Thiago Gazzinelli Haddad, 31, no apartamento em que mora, no bairro Santo Antônio
“É uma história bem inusitada”, adianta o professor de música, explicando que, quando saiu do abrigo materno para morar sozinho, em 2018, se deparou com uma dificuldade comum a tantos outros jovens nessa etapa da vida: “Eu não tinha móvel nenhum”. Foi quando seu pai intercedeu em seu socorro, lembrando que os móveis do avô de Thiago, que faleceu há cerca de 15 anos, estavam guardados em um depósito, sem uso. “Ele disse que eu poderia usá-los provisoriamente. E, obviamente, mesmo sem saber em que estado eles estavam e sem me lembrar muito bem deles, eu aceitei”, resume.
Sem saber muito bem do que se tratava, Thiago, que vive em um apartamento alugado no bairro Santo Antônio, na região Centro-Sul de BH, logo se encantou quando, já adulto, voltou a ter contato com aquelas peças. “Eu pirei”, diz, lacônico e entusiasmado. Ele lembra que os móveis estavam guardados em um armazém, que estava longe de garantir as boas condições de conservação que aquele tesouro modernista merecia. “Tinha goteira, tinha cupim, tinham manchas. Muita coisa estava detonada. Uma mesa de jantar, por exemplo, eu tive que caçar parafuso por parafuso para, depois, montá-la. Mas, mesmo assim, desde o primeiro contato, foi fácil perceber que eu estava diante de objetos especiais”, pontua.
À medida que se envolvia com aquele universo, o músico foi se embrenhando em pesquisas e viu crescer o seu interesse pelo design moderno. “Foi como se o mosquitinho do modernismo tivesse me picado. Então, me tornei um colecionador”, brinca. “Descobri que tinha muita coisa do arquiteto polonês naturalizado brasileiro Jorge Zalszupin (1922-2020), que se tornou um dos meus favoritos – e que, claramente, era um dos favoritos do meu avô também, embora ele nunca tenha falado sobre esse amor pelo mobiliário moderno com os filhos dele”, observa, citando que, coincidentemente, o patriarca da família tinha o mesmo prenome do designer.
Garimpos
Thiago Gazzinelli Haddad, que opta por uma decoração radicalmente pautada pelo vintage, reconhece que seu interesse por peças de designers conceituados, feitas de matéria-prima rara, como o jacarandá, esbarra em um obstáculo: o preço de tais itens.
“É tudo muito caro e eu não faço parte da clientela típica desse tipo de produto. Então, tenho que buscar em um antiquário ou um topa-tudo, onde as coisas saem mais em conta, mas geralmente estão mais deterioradas”, explica, informando que o garimpo começa muito antes de sair de casa, em um processo de pesquisa. “Geralmente, eu vou atrás de coisas que eu já conheço, por já ter visto em algum lugar”, diz.
Após a compra, geralmente há necessidade de restauro. E, depois, um esforço de conservação. “Eu sempre cubro os móveis com plástico, tentando preservá-los o máximo possível”, garante.
Favoritos
Além de garimpar em BH e cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, Thiago também aproveita viagens, como uma que fez para Buenos Aires, capital argentina, para encontrar raridades. Na maioria das vezes, porém, ele faz esse exercício pela internet. Foi assim que encontrou uma de suas peças favoritas: uma luminária pendente japonesa desenhada pelo artista e paisagista americano Isamu Noguchi. “Era um item da casa de Jorge Zalszupin. Quando ele morreu, sua família fez um leilão residencial, quando comprei o item, que está desgastado e, por isso, foi difícil trazê-lo para BH”, lembra.
Penteadeira Putskit, de Jorge Zalszupin
Já entre as peças que pertenceram ao seu avô, Thiago tem dificuldade de apontar uma favorita. Há, por exemplo, a poltrona Jangada, criada, em 1968, pelo romeno naturalizado brasileiro Jean Gillon (1919-2007), que o músico chegou a emprestar para exibição em uma exposição realizada no ano passado, na Casa Fiat de Cultura. Ou os itens do escritório, produzidos, nos anos 70, pela fábrica de móveis de Zalszupin, a L’Atelier, possuindo boa parte do acabamento feito em plástico e ostentando cores vivas. Da mesma lavra vem a penteadeira Putskit, com aspecto que remete a uma peça de camarim, que ele tem no quarto. De todos, no entanto, o objeto que ele prefere é a mesa de centro Pétala, dos anos 60, projetada pelo mesmo designer.