Clarissa Campolina, Luna Melgaço e Marília Rocha conquistaram um lugar impensável há três décadas, vencendo o machismo predominante no setor audiovisual brasileiro ao criarem uma produtora encabeçada por mulheres. Fundada em 2005, em Belo Horizonte, a Anavilhana é responsável por obras premiadas como “A Cidade Onde Envelheço”, “Solon” e “O Céu Sobre os Ombros”.

A produtora também passou a se preocupar com trabalhos formativos, especialmente entre aqueles que, como elas, tiveram que enfrentar barreiras socioeconômicas para realizarem o sonho de fazer um filme. Essa é a essência do Projeto Ventura, que, a partir de recursos obtidos por lei de incentivo, promoveu um curso de realização com representantes de cinco grupos ou coletivos da capital mineira.

“Mesmo sendo mulheres brancas que passaram por um curso universitário, a gente já teve restrições Imagine então quem está em outra condição e quer filmar a realidade dela, trazendo suas histórias e outros olhares? A dificuldade é muito maior que a nossa”, afirma Marília. O resultado do projeto poderá ser visto neste sábado, às 14h, na sede da Funarte, quando serão exibidas cinco obras audiovisuais.

“As dez mulheres que participaram do Ventura vêm de movimentos sociais e estão em periferia, em favela ou em ocupação urbana. De fato, é outra realidade que a gente não tinha proximidade”, salienta a cineasta, que viu nesse trabalho uma relação de mão dupla. “Buscarmos dar um suporte da nossa experiência para elas, mas nossa intenção também foi de receber esses olhares e histórias”, registra.

Participaram do projeto representantes dos grupos AKasulo, centro de convivência LGBTQIA+; Coletiva Mulheres da Quebrada, que realiza ações socioculturais e assistenciais para mulheres na região do Aglomerado da Serra; Coletivo Filme de Rua, que realiza filmes com jovens que vivem ou viveram nas ruas de BH; e mulheres do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas e do Movimento dos Trabalhadores sem Terra.

“O nosso envolvimento é maior com filmes, mas a questão da formação já nos chama a atenção há uma longa data. Eu e Clarissa damos aula em faculdade de cinema e, fora isso, fazemos muitas oficinas e laboratórios. Mas, de fato, foi uma grande novidade ter essa relação com outras possibilidades”, afirma a cineasta, que contou com o apoio essencial da Renca, produtora formada por mulheres negras.

Cada grupo participou com duas representantes femininas. “Muitas vezes a gente sente sozinha (durante um projeto audiovisual). Realmente a gente queria dar suporte e deixar as pessoas à vontade. Uma dupla já possível ser uma mini-equipe de um trabalho, com uma estando em diálogo com a outra”, explica Marília, que também convidou especialistas para integrarem o curso.

As participantes receberam um kit básico, como smartphone, fone de ouvido e microfone, para trabalharem em seus projetos e, ao final, apresentarem uma obra. “Acho até difícil de chamar de curta-metragem. Na verdade, é um produto audiovisual que elas nem precisariam necessariamente fazer um filme. Não precisava ser narrativo. Isso ficou bem aberto para cada dupla escolher”.

Para Marília Rocha, o que há em comum nas obras é um “olhar próprio de um momento, de um lugar, de um espaço e de uma vivência delas. E são olhares que não estão óbvios no cinema, porque são pessoas que estão falando de dentro. Se fosse eu fazendo um filme sobre qualquer um desses assuntos e dessas pessoas, seria completamente diferente”, analisa a realizadora.

Além da exibição dos trabalhos de conclusão, a sede da Funarte também receberá hoje palestras sobre “Produção e apontamentos para o futuro”, com Gabriela Matos, da Renca, e “Como escrever um projeto audiovisual”, com a produtora Mariana Mól e Marília Rocha. Feliz com o resultado, a cineasta espera novas edições para o futuro. “Eu sonho que seja uma semente para várias Venturas e possa se expandir”. 

Sandra da Silva, ca Coletiva Mulheres da Quebrada, não esconde o frio na barriga. "Agora está entregue", assinala. A dupla forma com Aline Pereira, concebeu um curta voltado para a questão do cuidado em relação às pessoas com mais de 60 anos. "Nosso público é todo feminino, com uma boa quantidade de mulheres 60+. O filme é uma homenagem a elas", destaca Sandra.

A dupla usa imagens das mulheres da Coletiva, enfatizando um dia na vida delas. "A gente acompanha o cotiano delas até chegar o momento do encontro nosso na Coletiva", revela. Sandra é atriz de teatro, mas já namorava o cinema de longe. "Aí vi uma propaganda do curso na internet. Fiquei curiosa e chamei a Aline", lembra a participante, que não conhecia, até então, o trabalho da Anavilhana.

O que mais chamou a atenção dela foi o fato de elas próprias terem a oportunidade de contar as suas histórias. "Nesta questão periférica e até mesmo racial, tem sempre alguém contando a nossa história. O cinema nunca esteve ao meu alcance. Não foi fácil acessá-lo. Tudo parecia muito distante. O edital das meninas estava super facilitado neste sentido. Comemoramos muito quando fomos selecionadas".

Para ela, o Ventura possibilitou conhecer a Renca e a Anavihina, absorver conhecimento e ainda fazer uma rede de contatos com outros coletivos. "Foi muito inportante tudo o que essas mulheres levaram para os encontros. Foi enriquecedor a ideia de estar junto, de estar construindo e de estar contando as nossas histórias. A nossa ideia é não parar. Nós montamos um núcleo de audiovisual para pensar propostas", adianta.