Em fevereiro de 2020, quando estava voltando de Portugal, onde havia participado da cerimônia de entrega do prêmio Oceanos (com o qual foi agraciada em 2019, pelo romance “Sorte”, que ficou em terceiro lugar no certame), para a Inglaterra, onde reside desde 2001, a mineira (de Guarani) Nara Vidal não poderia imaginar que aquela seria sua última viagem durante um bom tempo – ela mesma lembra que, na suas previsões para 2020, o ano seria particularmente movimentado, inclusive com vindas programadas para o Brasil. Em março, porém, pontua ela, a Inglaterra anunciou o isolamento em função da propagação do novo coronavírus, a dita primeira onda. “E aí, de repente, estávamos todos fechados em casa. A vida parecia suspensa: ninguém mais olhava o relógio, as crianças sem motivação para estudar, ninguém mais corria para chegar a lugar nenhum. Empregos em vários setores estavam ameaçados, e estávamos diante do impensável, do inimaginável”, recorda. 

Em meio a esse inédito (ao menos neste século) estado de suspensão, a escritora conta que a insônia logo espraiou suas raízes em seu dia a dia. “Quase toda madrugada, às 3h, e durante o período de um mês, eu ia para a minha mesa (naquele horário) e começava a escrever contos. Esse processo me ajudou a driblar a realidade dura, que era também tão incerta", descreve ela, que se se deu uma única condição: não escrever sobre a pandemia. Nascia, assim, em meio às madrugadas insones, “Mapas para Desaparecer” (Faria e Silva Editora, 136 páginas, R$ 48), seu mais recente investimento literário, disponível nas livrarias de todo o país. “Escrevia até o dia clarear, todo dia. Quando amanhecia, eu parava. Era um momento íntimo e de rebeldia, eu imaginava, porque, enquanto todo mundo se preocupava com a Covid – inclusive eu –, naquelas horas da madrugada, eu voltava a criar, a escrever, como se fosse um luxo mesmo”, analisa. 

Ao final de um mês, os textos que iriam compor o livro estavam com seu ponto final. “Depois, a questão era trabalhá-los, refinar aquele jorro de palavras, colocar ordem naquele caos criativo – e propor à editora”, explica. Nara ainda conta que, enquanto escrevia, não pensava em uma unidade, um norte. “Nem mesmo um ponto de partida. Mas. quando concluí o processo, vi que era nítido um denominador comum, e acho que ele é a nossa insignificância e os nossos disfarces para driblar esse inevitável desaparecimento. Inconscientemente, talvez tenha sido reflexo do medo e receio da realidade da pandemia. Talvez. Pode ser uma espécie de frustração nas tentativas de diálogos com as pessoas, num sentido temporal em direção à morte. Pode ser também que o ponto unitário dos contos seja o nosso cansaço particular e coletivo dentro de vários tipos de convivência. Mas acredito que cada leitor encontre esse fio muito melhor que eu”, entende. 

“Castanheiras” – conto que, no livro editado, dá início aos trabalhos – surgiu inicialmente com a perspectiva de se tornar um romance. A narrativa foca uma mulher dilacerada com o desaparecimento, há cinco anos, de sua primogênita, de quem nunca mais teve notícias. No momento em que a trama tem início, a caçula está para completar a idade que a mais velha tinha – 9 anos – quando desapareceu, ao voltar da praia. “Pensei muito naquele tema que veio a partir de um sonho no qual eu perdia uma criança de vista. Uma sensação de afogamento, o maior horror de todos. Enquanto tentei esboçar um romance com essa temática, vi que não conseguiria segurar esse terror por muito tempo. Seria impossível e penoso demais conviver com uma tragédia assim por meses, talvez anos até concluir algo que não é concluído, como está no conto”, assume. 

Já o potente “Luciana Espírito Santo” ela define como “uma ilustração da crueldade das nossas redes de contato”. “É óbvio que eu não sou aquela personagem, mas compartilho com ela a recorrente e muito cansativa mania de ser subestimada por ser mulher. É uma monotonia isso. Muitas amigas escritoras passam pela mesma estrada. O problema da Luciana é que ela deu importância vital à validação dos outros e se julgou a partir disso. O resultado foi imperdoável. Eu não conheço nenhuma Luciana, mas não duvido que exista”, comenta. 

Desse conjunto contístico, “Cipó-Mil-Homens (Indigência)” foi o último a ser escrito. Na verdade, Nara Já tinha entregado o arquivo da obra à editora quando lhe ocorreu a ideia de partir do terreno abandonado do filme “Paris-Texas” (Wim Wenders, 1984) e de uma reportagem que leu sobre como comunidades indígenas usam esse cipó forte. No texto, o cipó é utilizado por uma menina para deslocar o corpo de sua mãe quando esta repentinamente morre. A partir daí, sozinha no mundo, ela, praticamente criança, passa a se prostituir, “pegando gravidez sem parar”, embora só um feto vingue – o filho que, mais tarde, também faz uso da outra serventia para a qual a planta citada no título já foi recorrente. “A pedofilia como o tema dele está ligada a essa habilidade das personagens de usarem a natureza para se defenderem. A capa do livro foi, inclusive, inspirada nesse conto. A artista Raquel Matsushita pesquisou sobre a flor do cipó-mil-homens e criou essa arte, que é também bastante sugestiva, porque pode se assemelhar a uma vagina. Uma metáfora para muitos dos temas centrais do livro que têm o corpo da mulher como território explorado e desgastado em protagonismo”, diz Nara. 

Com o fluxo criativo em dia, Nara conta que nem bem lançou “Mapas para Desaparecer” e já está com um romance no prelo – desta vez, chancelado pela Todavia. Nâo só. No ano que vem, lança um trabalho de não ficção sobre personagens femininas na obra de Shakespeare pela editora mineira Relicário. Quanto à pandemia, ela conta que, em sua casa, ela e o marido já receberam as duas doses da vacina. “O monitoramento é feito, mas principalmente pelos meus filhos”, diz. Um alívio para quem, no ano passado, ao entrar no Facebook, se sentia como se estivesse vendo uma página de obituário. “Hoje, nossas vidas estão quase normais (lá). Ainda há algumas dificuldades e restrições, mas são pouquíssimas. Há anos eu não vou ao Brasil, e isso é doído. Lamento que as vacinações aí estejam atrasadas, que as mortes ainda estejam em alta e que o país esteja preso em um pesadelo no qual ninguém pode se movimentar. É surreal”, diz, desalentada.