Balanço

Orquestra Filarmônica inicia sua segunda década com desafios e frustrações

Orquestra superou ameaça recente de paralisação; maestro Fabio Mechetti reclama de burocracias e adianta homenagem a Beethoven para 2020

Por Rafael Rocha
Publicado em 21 de julho de 2019 | 03:00
 
 
 
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Quando Fabio Mechetti disse que era importante criar um serviço de assinaturas para a orquestra que nascia naquele ano de 2008, houve repreensão. “As pessoas me falavam: ‘Mineiro vai pagar antes de ter o produto em casa?’”, relembra o maestro. Passados 11 anos, a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais ocupa um espaço indubitável na cultura do Estado.

Formado por 90 músicos – 20 deles estrangeiros vindos de 14 países da Europa, Estados Unidos e América do Sul –, o conjunto exibe um número de assinantes de causar inveja: neste ano, nada menos que 3.366 pessoas toparam pagar antecipadamente para assistir aos concertos. Em 11 anos de música, são 1,12 milhão de espectadores, 1.092 obras interpretadas e 857 apresentações realizadas.

Os primeiros dez anos passaram, e agora a Filarmônica inicia um novo ciclo. Os instrumentistas entraram no primeiro ano da segunda década da orquestra, mas o projeto ainda está longe da afinação irretocável.

Os concertos são emocionantes, o repertório é de qualidade, mas o funcionamento pleno de uma orquestra de “alta performance”, como gosta de frisar o presidente do Instituto Cultural Filarmônica, Diomar Silveira, depende de muito mais do que acordes de violinos e trompetes.

Houve momentos dissonantes nos últimos tempos. Como a orquestra depende parcialmente de verba pública – o repasse anual é de cerca de R$ 18 milhões, oriundos dos cofres estaduais –, atrasos acabaram deixando a orquestra um tanto fragilizada. A crise financeira acentuou o problema, adiando os ambiciosos planos que frutificam sob a batuta de Mechetti. “Consolidar isso é difícil. Vingar e dar frutos é a coisa mais difícil no Brasil. Todo ano é uma luta para equilibrar as contas”, desabafa o maestro.

Uma das pendências é a contratação de mais músicos. O conjunto atual, com 90 instrumentistas, precisa ser ampliado para 104 membros, segundo revela Mechetti. A falta de dinheiro, no entanto, não permite cravar previsão para cumprimento da meta. “Tem sido difícil manter essa programação com os músicos que temos, por razões até físicas. É um esforço muito grande”, diz.

Colocar uma orquestra que nasceu somente há 11 anos no pódio do cenário brasileiro é um feito elogiado também pela crítica. Diante do aplauso da maioria, o maestro segue seu dedicado instinto de continuar trabalhando para que a Filarmônica de Minas Gerais seja sempre lembrada pela excelência.

A imponente Sala Minas Gerais, sede da orquestra situada no Barro Preto, é citada como um dos melhores lugares de concerto do país. Sua taxa de ocupação é alta, beira os 80%. “Depois da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), a Filarmônica de Minas foi a única que deu certo”, reflete o crítico de música da “Veja”, Sérgio Martins. “Mechetti apresentou um projeto sério, competente, bem direcionado e com uma programação interessante. Ter saído do Palácio das Artes, um lugar de péssima acústica, foi importante”, completa o jornalista.

O crítico Irineu Franco Perpetuo, colaborador do jornal Folha de S.Paulo e da revista Concerto, também rasga elogios ao conjunto mineiro. "Trata-se da orquestra que mais me agrada ouvir no Brasil", assume. Para ele, a presença de Mechetti é um diferencial. "Ele é um programador inteligente e de bom senso, e implantou na Filarmônica um trabalho de refinamento sem paralelo no Brasil", avalia.

Para que bemóis e sustenidos da Filarmônica ampliem ainda mais o encantamento e formação de plateias, é preciso dinheiro – muito dinheiro. A orquestra é acusada de ser elitista, mas há bilhetes a menos de R$ 50 e até concertos gratuitos. 

Enquanto por aqui a orquestra luta para ser valorizada, no exterior o conjunto musical vem amealhando elogios da crítica especializada, como da revista “Gramo-phone”. “São pessoas que nem sabiam onde era Minas Gerais. Está na hora de usar a Filarmônica como cartão de visita do Estado e do Brasil lá fora, como exemplo do que deu certo, num país que tem fama de que nada dá certo”, sugere Mechetti.

Orquestra jovem é uma das metas

Na música se costuma dizer que uma orquestra sem sala é como um time sem campo. Por isso, ter pleno domínio da Sala Minas Gerais, atualmente nas mãos do governo estadual, está entre os planos da Orquestra Filarmônica.

Além desse objetivo, o maestro Fabio Mechetti elenca outros dois como fundamentais para o conjunto musical avançar: implementar uma academia de músicos e uma orquestra jovem.

A primeira serviria para ensinar técnicas de aprimoramento musical a iniciados. A segunda atenderia jovens em fase de formação. Para Mechetti, a ação configura uma ação social, segmento que a Filarmônica tanto pretende alcançar. “Ajuda a formar o cidadão, então precisa ser feito com urgência. São desafios para a próxima década que irão consolidar a orquestra”, diz o maestro.

Um regente sob burocracias

Parecia que a harmonia na Orquestra Filarmônica era um uníssono, mas, nos bastidores, as notas estavam fora do tom. Como a orquestra depende parcialmente de verba estatal, os atrasos nos repasses financeiros, que já vinham de governos passados, deixaram a relação com os administradores estaduais em desalinho. E, desde janeiro, a Filarmônica está sob uma estrutura cujo chefe principal tachou a Sala Minas Gerais de “monstruosidade da elite” – foi assim como o governador Zema se referiu à sala de concertos durante a campanha eleitoral.

Além dessa afirmação, uma entrevista dada ao Magazine pelo secretário de Cultura e Turismo, Marcelo Matte, no mês passado, deixou músicos e maestro um tanto angustiados. Na ocasião, Matte assumia publicamente, pela primeira vez, que o conjunto musical corria riscos de “interrupção temporária” de suas atividades durante o segundo semestre deste ano.

O receio era motivado pela falta de resposta definitiva da Advocacia Geral do Estado (AGE), que não queria que o contrato de gestão da Secretaria de Cultura e Turismo fosse renovado mais uma vez com o Instituto Cultural Filarmônica, entidade que faz a gestão do conjunto.

Além de deixar os músicos ressabiados, a divulgação da crise financeira curiosamente acabou resultando em notícia positiva. Após pressão, o contrato de gestão foi renovado até dezembro.

Apesar do alívio contratual, as verbas que o governo repassa para pagar a folha salarial dos instrumentistas continuam atrasadas. “A gente já previa essa crise há dez anos. A equação que pensamos, com o governo dando dinheiro para pagar salário e a gente indo atrás do restante para manutenção e programação, foi ficando defasada, pois começou a ter menos (dinheiro) de um lado”, afirma o maestro. “Quanto mais pudermos resgatar aquele modelo, do ponto de vista administrativo, melhor. A Filarmônica é um projeto reconhecidamente de sucesso”, completa o regente.

Para evitar mais sobressaltos, o governo estadual também informou que pretende lançar, nesta semana, um edital para seleção de organizações sociais interessadas na gestão da Filarmônica. Desde sua criação, a orquestra é gerida pela mesma entidade, e nunca houve um processo licitatório para tal.

Acostumado com o cotidiano de orquestras norte-americanas, onde o financiamento privado é regra nesses conjuntos, Mechetti avalia que essas tratativas acabam atrapalhando o dia a dia dos músicos. “Não se justifica o engessamento que a Filarmônica teve que passar nos últimos seis anos”, critica.

O processo de compras, algo usual para uma empresa do tamanho de uma orquestra, é outro fator que Mechetti estranha. “Agora precisamos de autorização para comprar qualquer coisa. Viramos uma autarquia pública, o modelo está passando a ser estatal. Licitação, para mim, é um dos maiores maus do Brasil. É um trabalho árduo, ao mesmo tempo inútil e prejudicial”, defende.

Assinaturas caem

Em meio a problemas financeiros, outro fator inédito afetou, ainda que simbolicamente, a administração. Em 2019, foi a primeira vez que houve queda no número de assinaturas da Filarmônica, que vinha num crescente. “Foi uma pequena queda, mas estamos estudando se (os ingressos) estão caros, se são os solistas que não atraem ou se estamos com a programação muito de vanguarda”, reflete o maestro. 

Para ele, outra burocracia pode ter atrapalhado as vendas. A orquestra só pôde realizar sua campanha de assinaturas depois das eleições de outubro. “Começamos a campanha muito tarde ano passado, em novembro, então houve pouco tempo para vender assinaturas. Além disso, existe um mal-estar na sociedade e as pessoas estão sem muita energia pra encarar e fazer as coisas”, acredita.

Beethoven e Bartók são homenageados em 2020

Para que o deslize de redução nas assinaturas não se repita, a programação completa de 2020 será lançada em setembro. Há boas notícias e ao menos uma perda: o grande pianista Nelson Freire não vai participar da programação, ao contrário dos últimos anos. 

Entre os grandes, o violoncelista Antonio Meneses e o pianista Arnaldo Cohen estão confirmados. A orquestra, no entanto, não consegue mais trazer outros solistas de renome internacional, já que, além do dinheiro parco, todos os custos são atrelados ao dólar, moeda que teve alta considerável nos últimos anos.

Por isso, para 2020, a Filarmônica vai contar com jovens solistas que estão se despontando no exterior. “Hoje podemos trazê-los, mas, daqui a cinco anos, estarão com preços proibitivos”, diz Mechetti.

Uma grande homenagem a Beethoven está programada, já que em 2020 são celebrados 250 anos de nascimento do compositor alemão. Outro aniversariante é o húngaro Bartók, que também será festejado.

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