Ícones da palavra

'Os Sabiás da Crônica': livro reúne sexteto brilhante da literatura brasileira

Recém-lançada, obra marca o reencontro de Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, José Carlos Oliveira e Stanislaw Ponte Preta e costura a relação de afeto e amizade que permeou o grupo

Por Bruno Mateus
Publicado em 30 de outubro de 2021 | 09:30
 
 
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“Só uma vez troquei duas palavras com aquele homenzinho sem queixo e de olhos de criança. Tenho agora nas mãos, por favor de Gáudio, uma boa parte de suas músicas. Vendo essas letras, eu me pergunto se Noel Rosa não foi, tanto quanto sambista, um cronista e um poeta”. Estas são as primeiras linhas de “Noel Rosa, poeta e cronista”, crônica de Rubem Braga até outro dia inédita em livro, já que agora ganha as páginas de “Os Sabiás da Crônica”, antologia recém-lançada pela editora Autêntica.

Impresso entre as páginas 76 e 79 do volume, o texto é um dos encantos do livro, que reúne escritos dos capixabas Rubem Braga e José Carlos Oliveira, dos cariocas Vinicius de Moraes e Stanislaw Ponte Preta e dos mineiros Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Alinhados em ternos e gravatas, os seis aparecem na famosa foto que estampa a capa da obra. Na cobertura do apartamento de Rubem no Rio de Janeiro, naquele 8 de novembro de 1967, os escritores se juntaram para realizar a sessão fotográfica de divulgação dos primeiros títulos da recém-lançada Editora Sabiá, de Rubem e Sabino. 

E é a partir dessa imagem que se dá o reencontro dos sabiás. No fim de 2018 – ou início de 2019, ela não se lembra com precisão –, a editora Maria Amélia Mello curtia a leitura da biografia “De Copacabana à Boca do Mato: O Rio de Janeiro de Sérgio Porto e Stanislaw Ponte Preta”, da historiadora Cláudia Mesquita, quando se deparou novamente com a foto.

“O mais curioso é que eu já conhecia, já tinha visto muitas vezes, mas nunca tinha parado para olhar com esse olhar de editora”, ela relata. Naquele momento, Maria Amélia sentiu a “adrenalina que todos os editores sentem quando percebem que ali tem um livro”. Foi ali, como recorda, que teve início o projeto. 

A missão de organizar as 90 crônicas – 15 de cada autor – foi dada ao professor de literatura brasileira da USP, poeta e ex-diretor da Cosac Naify, Augusto Massi, que assina o prefácio da edição, espaço que usa também para traçar um panorama da crônica no Brasil, desde o chamado “primeiro ciclo”, entre 1852 e 1897, com Machado de Assis, até chegar à crônica moderna, com o time da antologia. Durante dois anos, Massi pesquisou e esmiuçou livros, revistas – entre elas a primeira edição da “Revista da Música Popular”, publicada em setembro de 1954, em que apanhou a crônica sobre Noel Rosa – e outras antologias, a fim de dar à obra algo que fugisse de uma automática coleção de crônicas.

Com o cuidado de um pesquisador, a costura de Massi é engenhosa, repleta de cores, ambientes e nuances. Entre as mais de 300 páginas, há textos publicados desde os anos 1930 até 2004, quando morre o último sabiá, Fernando Sabino. O primeiro a alçar voo foi Stanislaw, em 1968, um ano depois da criação da editora que carregou no nome o apelido de Rubem Braga. E há nesse intervalo de pouco mais de 70 anos tantas transformações culturais coletivas e pessoais que o que se vê no livro é um valioso retrato tanto de um país em constante mudança – dos costumes ao cenário artístico e literário – quanto da íntima relação de afeto e amizade que unia aqueles seis homens engravatados, em pose para as lentes de Paulo Garcez. Este também um grande talento, que foi do “Pasquim”, “Jornal do Brasil” e “Vogue” e a única testemunha viva daquele encontro além de Chico Buarque, que aparece, nas primeiras páginas de “Os Sabiás da Crônica”, com o rosto liso e olhos ingênuos de seus 23 anos.

Deliberadamente, alguns temas estão presentes nos traços de todos os autores: infância, música e cinema, futebol, os botequins e a boemia, os personagens urbanos, as histórias de passarinhos, a chegada ao Rio. Como num quebra-cabeça, a ordem de leitura também foi pensada de forma a criar certas conexões entre os membros do sexteto. No primeiro texto, todos eles deixam fluir suas percepções sobre o próprio exercício da crônica – ou, como prefere Sabino, “o estranho ofício de escrever”.

“A 15ª crônica do Rubem Braga é um poema que ele fez para o Vinicius. Quando termina o Vinicius, ele fala da geração do Fernando Sabino; depois o Sabino fala do Mendes Campos. Você tem os núcleos com aspectos que ligam uns aos outros por laços de profissão e de amizade”, comenta Augusto Massi.

“Os Sabiás da Crônica” também joga luz sobre a importância da Editora Sabiá, responsável por publicar, em plena ditadura militar, os diários de Che Guevara; “Furacão sobre Cuba”, testemunha de Jean-Paul Sartre sobre a revolução na ilha; “Revolução Dentro da Paz”, de Dom Helder Câmara; e “Roda Viva”, de Chico Buarque. A Sabiá teve vida breve, mas notável.

Comprada em 1972 pela José Olympio Editora, a empreitada de Rubem e Sabino, importante para a consolidação da crônica no mercado editorial nacional naquele período, ainda imprimiu a primeira edição de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, no Brasil, organizou a primeira antologia de Jorge Luis Borges no país, editou obras de Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Pedro Nava, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e Rachel de Queiroz e mapeou toda uma cena latino-americana.

“Eles estavam engajados politicamente. Tentei mostrar que esse grupo enfrentou o golpe de 1964 e passou pelo período mais duro da repressão com o AI-5, em 1968, até os anos de chumbo, e essa ligação vai aparecer em muitas crônicas. Quando você as lê, toma um choque como essa história está se repetindo no Brasil”, aponta Augusto Massi, cuja intenção era, também, iluminar aspectos históricos do país a partir do ponto de vista dos cronistas.

Para Maria Amélia Mello, o reencontro dos sabiás, aqueles que cantam bonito, acontece num momento em que “o Brasil está sem ar e entristecido, não só pela pandemia”. “Não é à toa que esse livro”, continua a editora, “chega numa primavera, que antecipa o verão, o céu claro, em um momento para alegrar, para evidenciar que não somos esse país que está aí. Queremos acreditar na beleza, na esperança, e os sabiás trazem isso”.

“Os Sabiás da Crônica” leva ao leitor humor, crítica, política, história, lirismo e a união de um grupo de amigos talentosíssimos, os melhores de suas gerações, que, agora, pela primeira vez, se encontram nas páginas do mesmo livro. É a história da turma de Rubem, que amava Vinicius, que amava Fernando, que amava Paulo, que amava Stanislaw, que amava José, que naquela tarde de novembro de 1967 disse que chegara a vez do jovem Chico Buarque. “O sabiá continua piando”, observa, atento, Augusto Massi. 

“Os Sabiás da Crônica”

“Os Sabiás da Crônica” (Autêntica Editora), de Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Stanislaw Ponte Preta e José Carlos Oliveira. Organização de Augusto Massi, 352 págs., R$ 74,90 (físico) e R$ 52,90 (e-book) grupoautentica.com.br

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