A trajetória começou precisamente no ano de 2001, no bojo do coletivo mineiro Teia, capitaneado por seis integrantes – entre eles, Clarissa Campolina e Marília Rocha. Passados quatro anos daquele marco, as duas sócias citadas resolveram formalizar outra parceria, mas sem se desvincular da, digamos assim, “nave-mãe”.

“Na verdade, os nossos filmes continuavam sendo ‘assinados’ pela Teia, mas, principalmente para realização de longas-metragens, era necessário possuirmos um CNPJ. Nesse sentido, o propósito da empresa, a princípio, era o de formalizar a nossa atividade artística”, explica Clarissa. Em 2008, Luana Melgaço se tornou sócia, e o agora trio sentiu a necessidade de transformar os propósitos da produtora.

Surgia ali a Anavilhana, cujo nome, cumpre frisar, toma emprestada palavra de origem indígena que remete a um arquipélago fluvial. “Escolhemos por ser um nome feminino e por nos remeter justamente à imagem de ilhas que, pela proximidade, formam um arquipélago”, conta ela.

Marcando os 20 anos de um percurso coroado por êxitos, está acontecendo, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), a “Retrospectiva Anavilhana”, que percorre a trajetória da produtora com a exibição de mais de 20 filmes, exibidos de forma online e presencial.

Produções como cópias 35 mm de “Girimunho”, “Aboio” e “A Falta que Me Faz”, além dos novíssimos “Partida de Vôlei à Sombra do Vulcão”, coprodução com o Grupo Galpão, e “O Mistério de Haver Olhos”, com a participação de Grace Passô. A mostra também inclui filmes produzidos em parceria com os realizadores, coletivos e empresas produtoras, no Brasil e exterior, ressaltando o aspecto colaborativo das obras da iniciativa.

De volta aos primórdios, já constituída como Anavilhana, ainda assim a Teia, mais uma vez, continuou sendo a base para a produção dos filmes. O que mudou foi que, com a união das três, a nova “firma” pôde ampliar o diálogo com outras e outros realizadores. “Neste ponto, também começamos a entender o lugar de formação e de envolvimento com as políticas públicas do Estado”, repassa Clarissa.

Não por outro motivo, instada a fazer um balanço dos 20 anos de estrada, ela esclarece: “Nós existimos e conseguimos produzir ao longo desse tempo graças às políticas de Estado que incentivam a arte e a cultura. Somos uma produtora de cinema. Realizamos também filmes institucionais e documentários culturais, mas a nossa produção principal, que movimenta a equipe da Anavilhana, sempre foi voltada para os trabalhos autorais nossos e o dos nossos parceiros. Se colocarmos na ponta do lápis, essa escolha não é fácil”.

Não mesmo. Para falar sobre os principais desafios que tocar uma produtora nos moldes da Anavilhana encontra nos tempos atuais, Marília toma a palavra. “O financiamento de uma produção autoral independente é mais lento, passa por várias etapas do desenvolvimento, a concorrência dos editais e a contratação com órgãos públicos. Nesse tempo, o orçamento sofre uma defasagem grande entre o financiamento e a produção de fato. Em paralelo, o mercado dos streamings tem outra lógica financeira, e fica impossível pra gente competir nas mesmas condições de cachês de equipe e estrutura. Este é o nosso maior desafio hoje”.

Não bastasse, lembra Clarissa, até 2016, havia no país uma política de Estado que, enfatiza, se preocupava com a descentralização da produção cultural. “Assim como valorizava filmes de diferentes orçamentos e tamanhos. Atualmente, o que temos visto, principalmente a partir de 2018, é uma estagnação de um sistema de fomento que, vale dizer, era lucrativo para o governo e empregava muita gente”, analisa, acrescentando que aqueles que produzem filmes de baixo orçamento têm que se reinventar a cada produção, empenhando-se em ser criativos – e econômicos.

Marília Rocha, por sua vez, relembra que, no início dessa trajetória, a dificuldade era como fazer os filmes sonhados em Belo Horizonte, ponderando-se que, no país, a produção era completamente centralizada no eixo Rio-São Paulo.

“Aos poucos, conquistamos esse espaço e passamos a nos dedicar inteiramente ao cinema, tanto na realização como na programação, distribuição, consultoria e formação”.

Agora, adiciona ela, a questão passou a ser outra. “Basicamente: como fazer filmes novamente, depois de tudo que vivemos e depois do aniquilamento do cinema independente brasileiro nos últimos anos?”, pergunta, sem ter respostas.

Outras pedras no caminho, claro, também fizeram parte do percurso, como pontua Luana. “Como produtora, fui percebendo os preconceitos que vivi à medida que fui tomando consciência da sociedade machista em que vivemos. Por muito tempo, acreditei que era normal sofrer essa opressão. Pra mim, esta não é uma questão resolvida, só acredito que, pela minha experiência e pelos outros lugares de privilégio em que eu me encontro, já ocupo um lugar mais estabelecido. Aí o desafio passa a ser garantir, nos filmes que realizamos, que as equipes sejam diversas, que as representações sejam garantidas e que assédios e abusos sejam punidos”. 
Clarissa complementa: “Acredito que a escolha de fundar essa empresa apenas com mulheres, de algum modo, reflete essa situação – que acredito ainda não estar resolvida em nenhum universo da nossa sociedade. Juntas, nos apoiamos, e acredito que conseguimos nos firmar num universo bastante masculino. Em 2001, quando começamos, o número de mulheres diretoras de longas-metragens, por exemplo, era muito pequeno. Atualmente, a gente tem estudos que nos mostram que essas porcentagens têm ‘melhorado’. Mas estão longe do ideal – seja em termos de gênero ou raça”.

O arremate fica com Marília: “A questão de gênero, infelizmente, está longe de ser resolvida. Isso é atestado pelos casos de abuso e assédio, pelo menor número de mulheres em cargos de liderança nas equipes, pela diferença significativa em termos de reconhecimento e status em relação aos filmes e produtoras masculinas”.

Ela adiciona que há, ainda, questões como a maternidade, que seguem tendo um impacto profissional muito maior para as mulheres, cuja sobrecarga foi, em geral, bastante intensificada pela pandemia. “O lado positivo é que essas questões estão sendo colocadas, revistas e melhor percebidas por todas nós”, conclui. 

Em tempo

A Anavilhana já lançou mais de 30 trabalhos, entre curtas e longas-metragens, instalações e séries de TV. Já teve obras oficialmente selecionadas e premiadas em importantes festivais nacionais (É Tudo Verdade, Festival de Brasília, Festival do Rio, Mostra de Tiradentes) e internacionais (Berlinale, Veneza, Toronto, San Sebastian, Locarno, Roterdã, Visions du Réel, DocLisboa). Não bastasse, seus filmes e instalações foram exibidos em icônicos museus de arte mundo afora: Centre Georges Pompidou, em Paris, MoMA e New Museum, em Nova York, e o Instituto Inhotim, entre outros. Suas produções (como o excelente “Cidade Onde Envelheço”, de 2016) também estiveram presentes no circuito comercial de cinema e em plataformas de streaming no Brasil e no exterior.

Programe-se

A “Restrospectiva Anavilhana” fica em cartaz até o dia 21 de janeiro. As exibições são gratuitas e, como dito, acontecem em formato híbrido. As exibições online podem ser conferidas pelo canal do Vimeo da Cinemateca do MAM-RJ. Já as que ocorrem em formato presencial acontecem no auditório Cosme Alves Netto, no MAM.