Entrevista

‘Tem um monstro dentro da sociedade brasileira’, diz José Miguel Wisnik

Compositor fala sobre seu disco mais recente, ‘Vão’, que reúne 11 faixas, muitas escritas 'em estado de emergência' causado pela pandemia e pela ascensão da extrema-direita no país

Por Bruno Mateus | @eubrunomateus
Publicado em 09 de setembro de 2022 | 10:12
 
 
 
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Na capa de “Vão”, José Miguel Wisnik aparece de perfil numa foto P&B. Ele está no vão do Masp. Na contra-capa do álbum, o centenário e majestoso jequitibá do Parque Trianon, localizado bem em frente ao prédio do Museu de Arte de São Paulo. É entre um e outro, entre o concreto e a natureza, entre o palpável e o etéreo que entram a música, a poesia e as 11 canções que olham para um vão, que é buraco, vazio, brecha, fresta, mas também é verbo, ação, futuro. Entre um e outro estão, também, a vida e a vitalidade da cultura brasileira.

“O Jequitibá” abre o novo disco de Wisnik. Na letra feita a quatro mãos com Carlos Rennó, o “gigante da floresta”, significado do nome derivado do tupi-guarani, é celebrado como aquilo que veio antes de tudo: do Masp, da Fiesp, do arranha-céu, dos bancos, da ciclovia, das manifestações, da São Silvestre e do Conjunto Nacional.

“Era ele, o velho, belo e bom Jequitibá do Trianon”, cantam Wisnik e Ná Ozzetti, uma das tantas convidadas de “Vão”, que reúne parcerias inéditas com Arnaldo Antunes, Luiz Tatit, Paulo Neves e também com os filhos de Wisnik, Marina e Guilherme.

A faixa ganhou videoclipe dirigido pelo Coletivo Bijari e composto por quase 700 fotos de Bob Wolfenson, que registrou a Avenida Paulista e o Trianon especialmente para o álbum, cujo diálogo aproxima Tom Jobim, Villa-Lobos, Glauber Rocha e seu “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e Baiana System, misturando o clássico e o contemporâneo numa só toada.

“Vão” é indefinível musicalmente; por outro lado, é direto e preciso quando, de uma rachadura, olha para o Brasil e pergunta que Brasil é esse que está diante de nós. Nesse sentido, o samba “Chorou e Riu”, com participação de Mônica Salmaso e uma cuíca que soluça ao fundo, é magnífico. Deslumbrantemente perturbadora, a letra de Wisnik fala da “hora e vez dos imbecis e os imbecis dos imbecis” e da dor de ver um país cair no buraco da barbárie: “Quem acreditou/ Ao ver o encanto se quebrar/ O coração despedaçar/ E despencar no vão do horror”.

“Falo também da extrema-direita negacionista que tem uma atitude necropolítica, que tem a morte como projeto político, que tem a ideia de armar o cidadão comum como se ele fosse um jagunço. A substituição do livro pela arma, o ataque à cultura, o gozo da violência, a desativação das instituições culturais, tudo isso com a cara dura da fake news, da calúnia, do presidente da desrepública”, comenta Wisnik, que toca piano ou teclado em todas as faixas, em entrevista a O TEMPO

O compositor, no entanto, frisa que não escreveu os versos de “Chorou e Riu” tomado de derrotismo e melancolia: “É uma constatação. Há no Brasil uma pulsação que a música está querendo trazer e que só poderia se expressar num samba, porque o samba é capaz de ir fundo no Brasil”. Nas 11 canções e seus pouco mais de 43 minutos, “Vão”, de alguma forma, procura por esse Brasil, “um lugar que há de vir, só faltou descobrir”, como ele canta em “Terra Estrangeira”, que encerra o álbum. 

“Vão” tem toques de samba, blues, jazz, soul, fado, choro, música afro… Como o álbum aparece musicalmente para você?

Nunca fui um compositor ligado a um gênero. Acho que transito pelos diferentes gêneros. Sou fluido musicalmente, tenho uma formação de música clássica, quando estudei piano foi pensando em ser pianista de concerto, mas tudo me levou para a canção, para a relação da música com a poesia. A canção, para mim, foi importante, foi o momento em que houve uma explosão de todas as linguagens, da bossa nova ao tropicalismo, e tudo que se seguiu. Não me sinto identificado com um gênero musical ou outro, é como se as canções conversassem entre elas. Não sei dizer, de fato, a que gênero ‘Vão’ pertence. ‘O Jequitibá’ lembra uma toada paulista, mas não é muito bem definido. ‘Chorou e Riu’ é um samba lento que faz referência à bossa nova. ‘Roma’ é uma balada mais ligado ao jazz, ao blues, eu poderia dizer. “Estranha Religião” tem participação do Baiana System, é um samba duro. ‘Terra Estrangeira’, feita para o filme de mesmo nome, todo passado em Portugal e lançado em 1995, fiz como um fado, um choro.

À exceção de “Terra Estrangeira”, o disco reúne composições de uma safra mais recente?

Uma parte delas já estava pronta antes da pandemia. Eu ia gravar o disco naquele momento, mas houve interrupções e mudanças gerais que me fizeram compor algumas coisas mais em estado de emergência. O repertório mescla composições de 2015 para cá com outras feitas agora, já nesse estado de coisas do mundo, da pandemia e da situação política do Brasil.

Sobre essa relação entre a palavra e a música que você menciona no início da entrevista, em “O Chamado e a Chama” você escreve e canta: “O poeta interpreta, o músico intervém/ A poesia é um chamado, a música é uma chama”. 

É verdade, porque meu trabalho é sempre uma relação entre a palavra e a música. Sou professor de literatura, escrevo livros. O que acontece então é que esse jogo entre a palavra e a música é uma questão forte para mim, o som e o sentido. ‘O Chamado e a Chama’ foi escrita em parceria com Paulo Neves, um poeta-músico gaúcho muito querido, com quem eu me entendo muito a esse respeito. O músico, de algum modo, está dentro daquilo que ele faz, de uma maneira que só a música permite. A poesia é um chamado, ela chama as coisas, é o verbo. A música é substantivo. Voltando até a sua primeira pergunta, depois de ter composto ‘O Chamado e a Chama’ ouvi ‘Ain’t No Sunshine’, de Bill Withers, e senti que era ele dentro da música. Fiquei impressionado, senti que era possível manter ‘O Chamado e a Chama’ ouvindo ‘Ain’t No Sunshine’. A bateria é exatamente de ‘Ain’t No Sunshine’, o baixo também faz desenhos de ‘Ain’t No Sunshine’. Depois aparecem a voz separadas de Gil e de Elza, aqueles que cantam e estão dentro da música, aqueles que a voz decola.

Na segunda faixa, o samba “Chorou e Riu”, você fala em “hora e vez dos imbecis e os imbecis dos imbecis”. Em qual vão o Brasil se encontra hoje?

A canção expressa o sentimento que muitos de nós sentimos do verdadeiro choque diante dos horrores que temos visto. Nem vou enumerá-los, mas é alguma coisa que representa uma quebra em relação a um sonho de país. A própria música brasileira é a portadora desse sonho de país. A letra fala em ‘Ao ver o encanto se quebrar, o coração despedaçar e despencar no vão do horror’, fala também de ‘Ao ver o inferno se rasgar pra dar o monstro a se mostrar e confirmar que estava em nós, nos nossos nós’. Tem um monstro dentro da sociedade brasileira, não uma pessoa. Falo também de uma face que mostrou a cara, e aí estou falando da extrema-direita negacionista que tem uma atitude necropolítica, que tem a morte como projeto político, que tem a ideia de armar o país, de armar o cidadão comum como se ele fosse um jagunço. Essa atração pela arma, a substituição do livro pela arma, o ataque à cultura, o gozo da violência, do negacionismo climático, a desativação das instituições culturais, das instituições de controle do desmatamento, tudo isso com a cara dura da fake news, da mentira, da calúnia, do presidente da desrepública… São tantos aspectos que dizem respeito a este monstro enorme. Tudo isso coloquei como hora e vez dos imbecis, como isso tendo um eco. Tudo isso que estou falando não é no sentido deprimido, melancólico ou derrotista. É uma afirmação, uma constatação. Tudo é uma flor, há no Brasil uma pulsação que a música está ali querendo trazer e que só poderia se expressar num samba, porque o samba é capaz de ir fundo no Brasil.

Nos últimos anos, diversos campos das artes têm se dedicado e entender o que está acontecendo no Brasil. São discos, livros, espetáculos e exposições. Alguns falam de um país que não existe mais. “Vão” também vai nessa onda de decifrar esse Brasil recente?

Se esse Brasil simplesmente não existe mais, não sei se é assim. O disco ‘Vão’ é uma pergunta sobre isso, não é uma afirmação. A última música do álbum, ‘Terra Estrangeira’, diz que há um lugar que há de vir, que só faltou descobrir e ainda quero ir. Justamente nessa música eu mesclei uma citação das Bachianas Brasileiras n.º 5, de Villa-Lobos. Também cito ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, de Glauber Rocha. Tem conversa com Tom Jobim, Villa-Lobos, Glauber Rocha para falar de uma terra que a gente perdeu, não sabe onde está, desse lugar que não se realizou, mas que está em nós, que quer se realizar. É isso que o disco continua dizendo exatamente. Indo ao centro de sua pergunta, ‘Vão’ diz isso de uma maneira indagativa, mas quer atravessar levando cultura. A cultura de um povo é aquilo que continua novo mesmo já tendo passado e continua inspirando as coisas do presente e do futuro. A cultura brasileira do século XX como elemento que continua a impulsionar, a inspirar e dar força.

O interessante é que ‘vão’ pode ser verbo, adjetivo, substantivo; pode ser brecha, vazio, espaço, fresta. 

Sim, pode ser tudo isso, pode ser aquilo que é em vão, ao mesmo tempo a fresta que se abre, que flutua. É aquilo que o Gilberto Gil falou em ‘Drão’, ‘o verdadeiro amor é vão’. Na capa do disco, estou no vão do Masp, que é justamente uma obra de arquitetura que tem um enorme vão livre, um edifício sustentado sem colunas, deixa um pessoa livre, embaixo do edifício. Isso é o sonho da arquitetura brasileira, de conseguir se sustentar no ar. Está no primeiro verso do disco: 'não havia Masp nem seu vão’. Na frente do Masp, está o Parque Trianon, onde tem o jequitibá do Trianon. A música está entre o vão do Masp e o jequitibá. Na capa, estou no Masp; a contracapa é o jequitibá. Foi feito um clipe sobre a música ‘O Jequitibá’, todo feito de fotos do Bob Wolfenson. O clipe é um mergulho que o Bob deu na avenida Paulista inspirado pela música, uma parceria minha com o Carlos Rennó, que está no clipe junto com a Ná Ozzeti, que canta comigo no disco.

Você lançou “Vão” recentemente em São Paulo. Há planos de viajar com o show para outras cidades?

É tudo que eu quero. BH é uma das primeiras cidades que estamos tentando viabilizar. Uma vez o show estreado, agora nós queremos ir aos lugares e Minas é um lugar muito caro para mim, para as minhas parcerias. Me sinto parte do Grupo Corpo, minha mãe era mineira, nascida no Triângulo Mineiro numa cidade chamada Prata, mas ela vive a infância e a adolescência em BH, cidade que mais ficou na memória dela, cidade que ela mais amava. Tenho uma ligação muito forte com Minas Gerais.

As músicas de ‘Vão’ ficaram na minha cabeça e, pensando sobre o atual momento histórico no país, acabei me lembrando de seu livro “Veneno Remédio – O Futebol e o Brasil” (2008), que tenta compreender esse fenômeno social que é o futebol. As eleições presidenciais e a Copa do Mundo calharam de acontecer, no Brasil, sempre no mesmo ano, o que me parece um destino muito simbólico. É como se a cada quatro anos, mergulhado nessa relação entre futebol e política, o Brasil fosse ainda mais Brasil. Você também tem essa impressão?  

O futebol é uma coisa, uma entidade que marca a vida brasileira, a formação, a identidade do povo. O imaginário do país se formou junto com o futebol. Tem um escritor inglês que diz que a vida brasileira é marcada pelas copas, são as marcas da memória coletiva. Eu não tinha pensado nisso, de que as copas justamente vêm junto com as eleições presidenciais, o que reforça ainda mais esse paralelo entre o futebol, a vida brasileira e os marcos e as marcas, sejam negativas ou positivas, do Brasil. Sobre essa relação futebol e política, tenho até que falar sobre os acontecimentos de junho de 2013, sobre os quais costuma-se dizer que ninguém sabe muito bem o que aconteceu. O Brasil tem tantos motivos para que houvesse revoltas e rebeldias para protestar e isso nunca acontece, mas ali, em junho de 2013, aconteceu e tem a ver com a Copa das Confederações e a própria iminência da Copa de 2014. De certo modo, o futebol serviu como um disparador para aqueles acontecimentos.

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