No 26 de março de 2020, Zélia Duncan, cantora e compositora ícone da música popular brasileira, estava no palco, pouco após a passagem de som para um show que ocorreria naquela noite, quando a Prefeitura do Rio de Janeiro decretou o primeiro fechamento na cidade devido à pandemia de Covid-19. A apresentação foi cancelada, assim como outras 12 que estavam programadas para as semanas seguintes.
Zélia se isolou, conforme previam as normas sanitárias, em casa. Em abril, com sentimentos à flor da pele – de angústia à alegria, do medo ao fascínio, da revolta à beleza –, começou a compor um disco que, em outubro daquele ano, estaria pronto.
O processo de concepção do álbum é análogo ao que acontecia frequentemente entre Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, ou do poeta com Mário de Andrade, em resumo, o percebido em correspondências de grandes nomes do passado.
Como se trocassem cartas e melodias, pelo WhatsApp, a cantora e o poeta e músico pernambucano Juliano Holanda construíram as 15 canções de “Pelespírito”, produzido junto a Webster Santos e laçando em maio de 2021.
As músicas no disco se constroem como em uma peça de teatro – nem sempre lineares, mas conexas. As paisagens pandêmicas que marcaram o Brasil nos últimos dois anos são levadas ao público como personagens em atuação. Não poderia ser diferente. Zélia se formou em artes cênicas.
Agora, o resultado desse processo virá a público em Belo Horizonte, nesta sexta-feira (22), quando a cantora e o amigo Juliano Holanda apresentam o espetáculo homônimo ao disco no Cine Theatro Brasil Vallourec, que, ainda, marca os 40 anos de carreira de Zélia. Na capital, eles vão se reencontrar, depois de meses distantes.
“Fiquei muito produtiva. Danei-me a escrever e fazer um monte de coisas (durante a pandemia de Covid-19). Estávamos começando a compor antes (dos fechamentos) e engatamos uma série de ideias pelo WhatsApp. Uma das músicas, ‘Onde É que Isso Vai Dar?’, é um diálogo literal com Juliano”, conta a artista. Nessas trocas, o álbum foi sendo erguido – de longe, em cartas, pílulas.
Zélia ressalta que o processo criativo foi uma sublimação – conceito freudiano que, em suma, trata da mudança de direcionamento de afeto para algum tipo de produção –, um consolo durante a pandemia.
“É uma emoção danada. Aprendi a gravar a minha voz no laptop, nunca fiz isso, canto há 40 anos. É um álbum muito essencial, no sentido de que tem poucas coisas. O que é importante são a voz e as canções. Tenho um jeito de cantar que é muito ‘explicadinho’. Nesse disco, mais ainda. Estou dizendo esse disco. As palavras são muito importantes”, narra.
No palco, a história atravessada nas músicas será traduzida em teatro – inclusive, com roteiro assinado por Zélia. “Me formei em teatro, entreguei meu TCC na pandemia. Tudo que tem cara de teatro fica mais bonito”, justifica. “Meu TCC foi uma pergunta: ‘Cantar é atuar?’ E usei alguns artistas que se apoiam muito no teatro para trabalhar a ideia. Não respondi a essa pergunta, mas a coisa mais importante na vida é perguntar”, diz, ao ser questionada sobre a temática.
“É importante aceitar o mistério das coisas, das perguntas. Mas outras temos que responder. ‘Onde é que isso vai dar?’ (canção do disco ‘Pelespírito’) Temos que achar uma resposta quando pensamos no Brasil”, pontua. Sobre política, a cantora, que é ativa nas redes sociais e envolvidas em causas à esquerda, quer que este momento “possa ser um começo de outro momento, em que as coisas têm consequências”.
Zélia Duncan comemora os 40 anos de atuação em música com um disco novo, sem olhar para trás, e, sempre, como definiu ao Magazine, inquieta – e fecha as quatro décadas como quem termina de ler um livro, com carinho e afeto às palavras ditas, mas, sempre, com a fome daquelas que ainda virão.
Serviço
Zélia Duncan com o show “Pelespírito”
Quando. Sexta-feira (22), às 21h
Onde. Cine Theatro Brasil Vallourec (av. Amazonas, 315, centro)
Ingressos a R$ 100 (inteira) e R$ 50 (meia)
Vendas no site Eventim ou na bilheteria do local
Informações: (31) 3201-5211 ou (31) 3243-1964