O Cântico dos Cânticos é um dos livros mais românticos da Bíblia – uma coletânea de poemas intensos sobre o amor, o desejo e o erotismo das experiências humanas. Nele, a voz da mulher é central: uma personagem que fala com liberdade sobre o próprio corpo, afetos e autonomia.
Este é o tema de “O Amor Não Está à Venda”, de Ana Azevedo Bezerra Felicio, doutora em linguística com especialização em estudos clássicos e em antropologia social, que, com base em estudos linguísticos e teológicos, faz uma releitura inédita, ao confrontar o viés racista e patriarcal presente em traduções bíblicas.
“Interpretações preconceituosas reforçam apagamentos simbólicos, como, por exemplo a frase ‘sou negra, mas formosa’. A conjunção adversativa ‘mas’ carrega uma carga racista, por sugerir que negritude e beleza seriam atributos opostos em vez de complementares”, infere Ana.
Sobre a data em que acontece o romance, ela diz que, “embora encontremos o nome de Salomão logo no começo do livro, a datação mais aceita entre os estudiosos para o Cântico dos Cânticos é de alguns séculos depois do reinado de Salomão”.
Mas quem são os personagens desse romance? “Um homem e uma mulher de quem não sabemos muito. Ambos de origem humilde. Em Cântico dos Cânticos 6:13, temos um curto poema em que a mulher é chamada de ‘Sulamita’. A palavra em hebraico refere-se mais a um atributo da mulher do que a um nome próprio. ‘Sulamita’ é uma forma feminina do nome ‘Salomão’, indicando que ela é uma mulher que traz paz”, ensina Ana.
Outros personagens que aparecem no texto, diz a autora, “são um coral de mulheres de Jerusalém, que falam poucas vezes e representam uma elite urbana da cidade que observa o amor dos camponeses. Por fim, há os irmãos da mulher, que são interpelados poucas vezes e podem ser simplesmente conterrâneos dela, como as ‘filhas de Jerusalém’”.
Historicamente tem uma explicação para essa citação. “Frequentemente no Antigo Testamento, a terra do povo de Deus é referida como uma mãe, cujos habitantes são todos irmãos. Isso tem implicações éticas e teológicas, as filhas de Jerusalém e os irmãos representam aqueles que deveriam ter uma relação de cuidado mútuo e respeito em relação aos amantes, mas isso não acontece ao longo dos poemas”, observa a linguista.
Mas por que um livro com narrativa sexual foi incluído nas Escrituras? “Porque o amor é coisa séria para Deus. O livro foi incluído exatamente para nos lembrar que o amor e tudo o que ele envolve, inclusive desejo, prazer, intimidade, vulnerabilidade e cuidado mútuo, não estão separados da espiritualidade, da vida de fé e da busca por sabedoria”, sustenta a autora.
Para ela, “o fato de termos, no coração da Bíblia, poemas sensuais, cheios de metáforas amorosas e imagens de desejo e fascínio entre dois amantes, nos obriga a repensar o modo como olhamos para o amor, para a sexualidade e até para nossa própria relação com Deus, com o outro e com o mundo. O Cântico não tem medo do corpo, não tem vergonha do desejo, não se esconde atrás de discursos de controle ou opressão”.
Ana observa que o livro traz no centro da cena “uma mulher que ama, que deseja, que toma iniciativa, que expressa seus afetos e sua paixão sem se submeter às lógicas patriarcais de sua época nem da nossa. E, nesse encontro, o que surge não é uma relação de poder, mas de reciprocidade, mutualidade, cuidado e alegria”.
A autora ressalta que “o amor físico e sexual é também uma sabedoria que vem de Deus. Porque o amor não se reduz a contratos, a jogos de poder ou a relações de mercado. Porque, desde o começo, Deus nos fez para o amor em todas as nossas relações. E esse amor que não pode ser comprado nem vendido, que não se mede por status ou por posses, mas que se expressa na entrega mútua, no desejo de estar junto, no cuidado com o corpo do outro e na celebração da vida”.
O Cântico dos Cânticos, prossegue Ana, “resiste a toda tentativa de transformar o amor em mercadoria, o sexo em ferramenta de dominação ou o corpo em objeto de consumo. Ele nos ensina que no projeto de Deus o amor é vida. E amar bem, com alegria, com desejo, com responsabilidade e com ternura, também faz parte da espiritualidade cristã”.
“O Amor Não Está à Venda”, Ana Azevedo Bezerra Felicio, editora Mundo Cristão, 160 páginas, R$ 54,90.
Desejo de ser beijada e tocada
trecho de “Cântico dos Cânticos” 1.2-4 fala de uma mulher tomando a iniciativa no campo do desejo. “Não é qualquer desejo. É desejo sexual, corporal, afetivo, relacional. Ela começa dizendo, de forma absolutamente direta: ‘Beije-me com os beijos de sua boca. Porque o seu amor é melhor do que o vinho”, entrega Ana Azevedo.
E explica: “Aqui já percebemos algo que, para a mentalidade antiga e, sejamos sinceros, ainda para muita gente hoje, é profundamente transgressor: uma mulher que expressa seu desejo de ser beijada, de ser tocada, de viver esse amor de forma plena, sem pudores. Esta não é uma mulher que fantasia um amor que nunca viveu. Pelo contrário, ela sabe muito bem o que é amar e deseja viver isso novamente. Ela quer mais”.
Ana revela que a comparação com o vinho não é à toa. “Na poesia bíblica, o vinho carrega significados de celebração, prazer, festa e de intoxicação, de perder os sentidos. A mulher diz que o amor dele é melhor do que o vinho, ou seja, é algo que a embriaga, que altera seus sentidos, que provoca prazer físico, sensorial e emocional”.
E finaliza: “E é isso que a metáfora do vinho também comunica: o amor que embriaga, que nos faz perder um pouco do controle, que nos tira das defesas, mas que, exatamente por isso, também nos convida à vulnerabilidade, ao encontro sincero e ao cuidado mútuo”. (AED)
Presença do erotismo poético
Entre as narrativas sexuais do Cântico dos Cânticos há uma bem ousada. “Leve-me com você! Vamos depressa! O rei me introduziu nos seus aposentos”. “Aqui aparece uma dimensão fundamental do amor: a busca pela intimidade. Ela deseja ser levada ao espaço privado do encontro, onde o amor pode se realizar sem as pressões sociais, sem o olhar externo, sem o julgamento. O quarto, os aposentos representam esse espaço da privacidade, da liberdade para amar, para se entregar, para experimentar o corpo e o afeto do outro”, interpreta Ana Azevedo.
E explica: “Esse trecho está carregado de metáforas sensoriais, de erotismo poético, de desejo declarado e celebrado. Traz uma visão do amor que rompe completamente com as lógicas de poder, de dominação, de comercialização dos corpos. Aqui, amor e desejo não são espaços de opressão, mas de vulnerabilidade e de mutualidade”.
Para a autora, o livro “é muito mais do que um poema de amor: é uma declaração teológica e existencial de que amar com desejo, com corpo, com sensorialidade, com entrega é parte do projeto de Deus para a vida. E esse amor não está à venda, não é mercadoria, não é domínio, não é opressão. É a celebração da vida, da liberdade e da beleza de amar e ser amado”. (AED)