“O Palestra Itália não é um clube que deu origem a uma torcida, mas uma torcida que deu origem a um clube”. A conclusão é de Geovano Moreira Chaves, doutor em História pela UFMG. A exaltação dirigida à parcela que  enche de paixão as arquibancadas de Belo Horizonte e país afora, é fruto de minuciosa pesquisa. Investigação acadêmica que remonta ao fim do século XIX e às primeiras décadas daqueles próximos cem anos. Período relativo ao fim da escravidão no Brasil (1888) e à imigração de italianos que vislumbraram em terras tupiniquins ambiente propício e solo fértil para vida digna e próspera. 

 

“O projeto de construir de Belo Horizonte demandava mão de obra que atuasse na construção civil. Com isso, surgiu a possibilidade de atrair trabalhadores italianos, que já estavam em regiões onde se cultivava café, por exemplo, no Sul de Minas, no Vale do Paraíba, no leste do Estado. Porque existia a crença que esse italiano era mais conhecedor do trabalho na construção civil e também pelo fato de ser um ofício barato e fácil de ser explorado”, explica Chaves.

 

O historiador aponta que poucos italianos que vieram para o Brasil eram pessoas com condições financeiras razoáveis. Por outro lado, a pobreza era a tônica da maioria absoluta dos imigrantes que se mudaram para a capital mineira.  O futebol belo-horizontino daquela época estava inserido no mesmo contexto social.

 

A colônia italiana na capital mineira se utilizou da criação de associações para o fortalecimento no novo território como forma de ajuda mútua e escudo contra o preconceito e as restrições impostas a estrangeiros. “Aliás, era um movimento que o governo italiano implementou nessa época, nas décadas de 1910 e 1920. Houve o incentivo para a criação de associações que valorizassem o sentimento de pátria italiana, porque a Itália tinha sido unificada há poucos anos (entre 1848 e 1871)”, esclarece Anísio Ciscotto, historiador e conselheiro do Cruzeiro.

 

 

Trecho da avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, no início do século XX

 

A colônia e a bola

 

Na esteira dessas associações e para além das quatro linhas, o futebol se apresenta como elemento essencial para construção e consolidação identitária da colônia italiana que fincou raízes naquela que viria a se tornar a capital de Minas Gerais, a partir de 12 de dezembro de 1897. 

 

Em 1907, surge o Americano Foot Ball Club, que fechou as portas em pouco menos de um ano. Três anos depois é criado o Yale, que tinha seu campo no Barro Preto, onde hoje está localizado o Fórum Lafayette, na avenida Augusto de Lima. Naquela equipe, concentrava-se o maior número de jogadores de origem italiana.

 

Até 1921, quando o Palestra Itália é fundado, houve outras duas tentativas malsucedidas de se montar times com o mesmo DNA: o Scratch Italiano e o Palestra Brasil. Neste período, o Yale mergulha em uma crise interna, derivada, entre outros, da inadimplência dos seus sócios.

 

“Os italianos jogaram em vários clubes de BH, mas não existia um grande clube que representasse a colônia. Por causa desse desejo de representatividade, uma vez que a população de imigrantes italianos populares em Belo Horizonte no começo do século era maior do que os nativos da região, a demanda pela construção de um clube que representasse essa necessidade popular ganha mais força”, ressalta Chaves.

 

Esse anseio identitário vai se encorpando entre os imigrantes pobres e mais abastados. O projeto sai do campo das ideias e ganha as ruas. “As famílias Savassi, Mancini, Lodi e Noce mobilizam toda a colônia italiana” em Belo Horizonte, como descreve Plínio Barreto (1931-2015) em seu livro “De Palestra a Cruzeiro - Uma Trajetória de Glórias”. O grupo pede apoio ao cônsul italiano Lourenço Nicolai e aos demais compatriotas que tinham poder aquisitivo alto para ajudá-los no projeto.

 

 

A reunião

 

Em reunião ocorrida em 2 de janeiro de 1921, na fábrica de artigos esportivos e calçados de Agostinho Ranieri, na rua dos Caetés, nascia a Societá Sportiva Palestra Itália, tendo o uniforme com as cores da bandeira italiana (verde, vermelho e branco). Estima-se que cerca de 70 membros da Casa di Itália, entidade que apoiava os direitos dos imigrantes no Brasil, tenham participado da reunião. Ao todo, cerca de 200 pessoas testemunharam o surgimento do Palestra Itália em Belo Horizonte. 

 

Aurélio Noce foi eleito presidente, tendo como vice, Tolentino Miraglia. Completaram a diretoria: Giuseppe Perona (1º secretário), Giovanni Zolini (2º secretário), Hamleto Magnavacca (1º tesoureiro), Aristóteles Lodi (2º tesoureiro) e Antônio Falci (administrador).

 

“O Palestra é a comunidade italiana. Nasceu da vontade da comunidade, não de uma pessoa ou de um grupo. É bom lembrar que em 1920 teve um censo e mais da metade da população de Belo Horizonte era de origem italiana. Então, o Palestra Itália já nasceu com a maior torcida, a maior presença em estádios em Belo Horizonte. Era uma coisa muito represada, um sentimento muito represado. Houve essa junção de interesses dos italianos e fortaleceu”, exalta Ciscotto.

 

Chaves compartilha do entendimento do colega. “Por causa disso, primeiro se tem a torcida, o público, o povo. Por meio do sentimento de identidade e de fortalecimento dessa identidade, constrói-se um clube, inclusive, pedindo apoio a quem tinha comércio, indústria, para o financiamento de produtos como bola, jogo de camisa, e até um campo para construir um clube e chamar de seu. Então, trata-se da história de uma torcida que deu origem ao clube”, discorre. 


“Acho que é o único caso no futebol brasileiro que primeiro se tem uma torcida, um público, uma demanda que deseja a construção de um clube que representasse essa necessidade popular”, completa o historiador. 

 

Controvérsia

 

Quando foi fundado em Belo Horizonte, o Palestra Itália já tinha um coirmão em São Paulo, nascido em 26 de agosto de 1914 e com os mesmos propósitos: congregar os imigrantes italianos daquele estado. Com isso, foi solicitado o estatuto daquele clube para servir de base ao recém-criado. Em 14 de setembro de 1942, a agremiação paulista também se viu obrigada a mudar de nome, em função da Segunda Guerra, e, desde então, passou a se chamar Sociedade Esportiva Palmeiras.

 

O documento que estabelece as normas da nova agremiação provocou uma controvérsia. Várias publicações apontam que, até 1925, o estatuto do Palestra não permitia a inscrição de jogadores que não fossem de origem italiana. Informação contestada por quem estuda a história do clube. 

 

“Existe um boato que o Cruzeiro só foi aceitar italianos a partir de 1925. Isso é mentira. Desde o início, o Palestra sempre aceitou italianos e brasileiros”, sentencia Fábio Militão, professor, membro do Núcleo de Pesquisas do Cruzeiro (NPC) e do podcast Memórias de um Gigante.

 

“Isso  jamais existiu. Desde 1921, o Palestra sempre foi aberto a todos. Essa versão não corresponde à realidade. Trata-se de desinformação e, ainda, má-fé de muitos”, reitera Chaves.

Trecho do primeiro estatuto do Palestra Itália comprova que o clube sempre foi aberto a jogadores de todas as nacionalidades

 

“Estatuto da Sociedade Sportiva Palestra Itália, com sede em Belo Horizonte, tendo por fim cultivar os sports em geral e desenvolver o jogo de foot ball em particular, prestando apoio a todas as manifestações e iniciativas para a educação physica, desenvolvimento da raça e cultura do espírito associativo entre italianos, brasileiros e outras nacionalidades”, comprova o estatuto, registrado no cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas de Belo Horizonte.

 

Devidamente documentado, o Palestra entrou em campo pela primeira vez em 3 de abril de 1921, contra um combinado de Nova Lima reunindo jogadores do Villa Nova e do Palmeiras. Vitória palestrina, no campo do Prado Mineiro, por 2 a 0, gols de Nani (João Lazzarotti).  “O Palestra nasceu vitorioso. Basta lembrar que o primeiro jogo foi contra o Villa Nova, que era uma equipe muito forte de Nova Lima, bancada pelos ingleses da mina de Morro Velho”, exalta Ciscotto.