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Foto: (Melodia italiana ‘Vieni Sul Mar’ inspirou o hino não oficial de Minas Gerais  / Reprodução)

Eduardo das Neves criou, em 1910, a primeira letra para a música inspirada na valsa folclórica italiana 'Vieni Sul Mar', intitulada 'O Minas Gerais' (Museu da Imagem e do Som/Divulgação)

Melodia italiana ‘Vieni Sul Mar’ inspirou o hino não oficial de Minas Gerais

Interpretada por tenores e cantores populares, música recebeu várias versões ao longo do tempo e tem a sua origem contestada

Por Raphael Vidigal Aroeira Publicado em 21 de fevereiro de 2024 | 06h00

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Ele já havia sido demitido do serviço de guarda-freios da Estrada de Ferro Central do Brasil quando, ao se esbaldar de farda, reincidentemente, na animada e boêmia noite carioca com todos os seus prazeres e tentações, acabou expulso do Corpo de Bombeiros. Não fosse por esses inconvenientes, Eduardo das Neves (1874-1919) talvez não tivesse se tornado um dos mais prolíficos compositores populares do início do século XX.

 

Contemporâneo de Benjamin de Oliveira (1870-1954), o primeiro palhaço negro brasileiro, ele também exerceu o ofício no circo e era igualmente dotado de pele escura. Mas o que marcou definitivamente a trajetória de Eduardo das Neves foi o fato de ter composto, em 1910, uma música intitulada “O Minas Gerais”, gravada em 1912.

 

 

“Sem querer puxar a brasa para a sardinha dos discos de 78 rotações, que são a minha área de pesquisa, acredito que essa primeira letra, do Eduardo das Neves, plantou a semente das que vieram depois. O próprio achado de, em algum momento do refrão, botar o ‘Minas Gerais’ foi dele”, aponta a pesquisadora, compositora e arranjadora Bia Paes Leme, coordenadora de Música do Instituto Moreira Salles, responsável pela plataforma Discografia Brasileira.

 

Definida pelos catalogadores da época como “cançoneta de exaltação”, a versão de Eduardo das Neves era uma reverência à embarcação recém-adquirida pela marinha nacional, um encouraçado de fabricação inglesa batizado de “Minas Gerais”, que, entre seus feitos mais notáveis, trouxe ao país os restos mortais de Joaquim Nabuco (1849-1910), principal voz na luta pela abolição da escravatura, que exercia o posto de embaixador nos Estados Unidos. Já a melodia usurpava os motivos de uma folclórica valsa italiana, de origem rumorosa e até hoje vítima de contradições. 

 

Origem

De acordo com um estudo dos professores universitários Carlos Jáuregui, docente no departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto, e Nísio Teixeira, docente no departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, publicado em 2019, “Vieni Sul Mar” começou a ser difundida no Brasil “provavelmente através das companhias italianas que atuaram aqui na virada do século XIX para o XX”, escrevem.

 

Outra hipótese é que a passagem do lendário tenor italiano Enrico Caruso (1873-1921), ídolo de Luciano Pavarotti (1935-2007), durante sua aclamada turnê pela América do Sul, em plena Primeira Guerra Mundial (1914-1918), tenha contribuído para a popularização da cantiga napolitana, carimbada como “barcarola” – ritmo que teria sido inventado pelos gondoleiros –, por estas plagas. A questão é que a versão de Eduardo das Neves é anterior a este período, o que não impede que ele, em sua posição privilegiada de artista, tivesse os ouvidos abertos para o estrangeiro. 

 

 

“A primeira parte da melodia é muito bem construída, é uma valsa popular e, ao mesmo tempo, clássica, fácil de decorar, e que está longe de ser triste, pelo contrário, ela tem uma claridade”, analisa Bia, que não economiza nos elogios ao ápice da canção. “O refrão é de matar, arrasador, pega todo mundo. Acho que o refrão é o segredo da maioria dos sucessos da história da Humanidade. Refrão é um negócio danado. As pessoas não sabem o resto da música, mas cantam o refrão”, pontua a entrevistada. O refrão ecoou, inclusive, no casamento da filha do ditador Benito Mussolini (1883-1945).

 

Caruso registrou a canção, cuja letra original retrata a sedução de um jovem marinheiro à sua amada, em 1919. E aí surgem novos mistérios. No registro do italiano, a música não tem autoria definida, e aparece como “tradicional”, enquanto a letra é atribuída a Eduardo Di Capua (1865-1917), autor da famosíssima “‘O Sole Mio”. Quando foi regravada por Pavarotti, em 1984, e, posteriormente, Andrea Bocelli, no ano de 2008, o letrista passou a ser Aniello Califano (1870-1919), um poeta napolitano. Nas versões brasileiras, no entanto, a composição é destinada a Teodoro Cottrau (1827-1879), filho de um compositor e musicólogo francês, que, apesar disso, nunca saiu de Nápoles.

 

 

Versões

Decorridos trinta anos do lançamento de Eduardo das Neves, veio a lume a mais conhecida de todas as versões para “Vieni Sul Mar”, ao menos em terras tupiniquins. Mineiro de Santa Maria de Itabira que adotou Juiz de Fora como lar, José Duduca de Moraes (1912-2002) assinava com o nome artístico De Moraes.

 

Em parceria com o “Rei da Embolada”, o pernambucano Manezinho Araújo (1913-1993), compositor de sucessos de outras duas majestades nordestinas, Luiz Gonzaga (1912-1989), o “Rei do Baião”, e Jackson do Pandeiro (1919-1982), o “Rei do Ritmo”, ele deu forma e verso àquele que se consagraria como hino não oficial de Minas Gerais. 

 

 

A primeira gravação de “Ó Minas Gerais” data de 1942, nos estúdios da gravadora Odeon. Além de exaltar o Estado ao invés da embarcação, a mudança poética mais significativa é justamente a alteração da frase que a intitula, do final da música para o refrão, e da inserção do acento sobre a letra “O”, que passou de artigo a interjeição.

 

A despeito do clamor popular, os compositores não desfrutaram os louros da glória.No final da vida, De Moraes precisou da ajuda de amigos e parentes para se sustentar. “O que mais conhecemos são autores de músicas de sucesso que terminaram no ostracismo. O direito autoral no Brasil não é confiável, e ser um bom compositor não garante uma vida digna para ninguém”, lamenta Bia. 

 

Todavia, ela ressalta que “o que fez sucesso, nesse caso, não foram as gravações, e sim a própria música”. “É igual a ‘Parabéns pra Você’, que tem letra brasileira (de autoria da compositora Bertha Celeste), que nunca rendeu um tostão, porque ninguém vai gravar isso para ouvir em casa”, compara. Bia sustenta que “Ó Minas Gerais” é uma criação de “natureza coletiva, catártica, grandiosa, para ser cantada em estádio”.

 

“É uma música dos mineiros, que se tornou quase uma ‘valsa-exaltação’, se podemos nos apropriar do termo”, diz, em referência ao estilo que Ary Barroso celebrizou com a sua “Aquarela do Brasil”, de 1939, típico samba-exaltação. Filha de mineiros, Bia se habituou, na mocidade, a realizar serenatas em Ouro Preto ao som de “Ó Minas Gerais”. Em 2023, uma nova Proposta de Emenda à Constituição (PEC) foi protocolada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais para elevar a peça a hino oficial do Estado. 

 

 

Pistas do clássico vão da Bolívia à Rússia

Batizada “Ó Linda La Paz”, uma canção quase idêntica à mineira, de 1949, se tornou hino informal da cidade boliviana, que diz: “Ó linda La Paz/ Quem te conhece não esquece jamais”. Antes, em 1945, Paulo Roberto (1903-1973), então locutor da Rádio Nacional, cunhou novos versos para a mesma melodia, que ganhou a voz do cantor Roberto Paiva (1921-2014). A alteração no refrão foi mínima: “Ó Minas Gerais!/ Quem já te viu/ Não te esquece jamais”. 

 

Há, ainda, uma versão de data desconhecida, feita por Haroldo Barbosa (1915-1979), nome por trás de hits de Elza Soares (1930-2022), Miltinho (1928-2014) e Nora Ney (1922-2003), que eclodiu no canto portentoso de Francisco Alves (1898-1952), o “Rei da Voz”, com direito à orquestra da Rádio Nacional.

 

 

Nesse caso, a narrativa é totalmente modificada, como observa a pesquisadora e musicista Bia Paes Leme. “É uma letra romântica, um pouco sofisticada, com uma poesia rebuscada, que retoma o ponto de vista da declaração pessoal”, destaca. Ela sublinha a presença do coro no refrão, embora a gravação tenha Francisco Alves como solista. 

 

O trecho em destaque fala de “lindas gaivotas” e “ondas no mar”. Coincidência ou não, no estudo dos professores Carlos Jáuregui e Nísio Teixeira sobre a canção, eles remetem à Rússia como possível origem da melodia de “Vieni Sul Mar”, anterior à italiana, datada do período pré-revolucionário e traduzida como “Cante, Andorinha, Cante”, e também a uma composição norte-americana, “Os Olhos Azuis de Nellie”, encenada em Nova York, em 1886.

 

Bia assente que não é possível determinar se o pioneirismo da melodia cabe ao “País da Bota”. Outro solo romântico para “Vieni Sul Mar”, interpretado no idioma italiano, coube à brasileira Dolores Duran (1930-1959), que a gravou em 1955. “Cantei essa música a vida inteira e não conhecia essa versão lindíssima da Dolores”, confessa Bia. Como se nota, a história é feita de redescobertas. 

 

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