"Só mais um morrinho". A frase é mais uma entre aquelas que se escuta quando se desloca entre as tantas ladeiras espalhadas por Belo Horizonte. A cidade dos bares é também a capital das subidas. A topografia do município, situado a 852 metros do nível do mar e com inclinação média de 8,28%, é um desafio para o planejamento urbano. Mais do que a exaustão para o deslocamento a pé ou o consumo excessivo de combustível para a subida de um morro, a característica íngreme das ruas da capital desafia ações de mobilidade, habitação e até mesmo de preservação ambiental. Questões que fazem parte do cotidiano e que um dia serviram de inspiração para quem se acostumou a ter que “subir Bahia e descer Floresta”, situação eternizada pelo cronista e compositor mineiro Rômulo Paes.
"Cada cidade tem suas peculiaridades. Um município próximo ao mar tem problemas com a maré. Em Belo Horizonte, o nosso grande desafio é com a topografia", explica o diretor de políticas de planejamento urbano da capital, Tiago Esteves da Costas. Para o responsável pela pasta, embora já se tenha conhecimento sobre as características da topografia da jovem capital de 125 anos, estudos são realizados com frequência para se definir questões de habitação e mobilidade na cidade. "Belo Horizonte já é consolidada, mas ainda existem áreas com possibilidade de abertura de vias e até mesmo para moradias. Então fazemos essa atualização para analisar a inclinação desses terrenos", completa o diretor.
Um desses levantamentos foi o Mapa da Declividade, feito pelo Instituto de Geociências da UFMG (ICG), em parceria com o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento - ITDP Brasil e com a BHTrans. O estudo analisou a inclinação em 53.505 trechos de vias de Belo Horizonte. A rua Expedicionário, no bairro Conjunto Taquaril, na região Leste, foi considerada a mais íngreme, com 57%. O ranking seguiu com a rua Copérnico Pinto Coelho, no bairro Santo Antônio, com 55% de inclinação.
Um desafio e tanto para quem vive no local. “Vim para cá quando tinha um mês de vida. Antes a rua era de terra, e quando chovia, abria uns buracos enormes e escorregávamos. Mas agora é super tranquilo”, conta a vendedora Gisele Nunes de Souza, de 32 anos, que reside na rua Expedicionário com o marido e os quatro filhos. Além da família de Gisele, outras duas residem na via. O trecho "é tão em pé e cheio de riscos" que o município precisou, em passado não muito distante, retirar alguns moradores do local.
Uma outra alternativa adotada pela prefeitura foi a instalação de escadas para facilitar a passagem pelo trecho. São 194 degraus em formato de zigue-zague com o objetivo de atenuar a subida e facilitar a descida. Gisele reconhece que as medidas trouxeram melhorias para as famílias que ainda residem na rua. No entanto, ela discorda de que a via seja a mais íngreme da capital. “Não tenho dificuldade. Talvez o vizinho de baixo tenha alguma, mas minha família acha tranquilo”, conta a moradora.
A impressão de Gisele pode ser justifica pela metodologia utilizada no levantamento desenvolvido pela UFMG. Isso porque o estudo não considerou todo o trajeto das ruas para determinar a inclinação. A pesquisa analisou trechos das vias, considerando o percurso entre uma esquina e outra. "Isso é importante não somente para pensar a mobilidade, mas também o planejamento de projetos de abastecimento de água, saneamento básico", explica o professor Rodrigo Affonso de Albuquerque Nóbrega, do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais, um dos responsáveis pela pesquisa.
A rua Expedicionário, no Conjunto Taquaril, é a mais íngreme da capital, segundo estudo da prefeitura e da UFMG (Foto: Flávio Tavares/O Tempo)
"Aqui só tem morro"
Além da análise das vias, o estudo buscou ainda definir as regionais com maior declividade. O levantamento constatou que a maior concentração de trechos íngremes está no Aglomerado da Serra, no Taquaril, no Morro das Pedras e no Aglomerado Santa Lúcia. A Pampulha e a área Central são as regiões com os trechos mais suaves. "As regionais com maior declividade média são a Leste (9,76%) e Centro-Sul (9,60%). Já a regional com menor declividade média é a Pampulha (5,65%)", informa a prefeitura.
Para o diretor de políticas de planejamento urbano da capital, Tiago Esteves da Costas, a declividade de cada uma das regiões reflete o processo de urbanização em Belo Horizonte. Com a decisão de se transferir a capital mineira de Ouro Preto para a antiga região do Arraial do Curral Del Rei, no final do século XIX, o objetivo era de que ocupação da cidade se limitasse as imediações da antiga avenida 17 de Dezembro, hoje a avenida do Contorno. "O êxodo rural e a urbanização fizeram que a população, antes prevista para 250 mil pessoas, se multiplicasse por dez. Isso aconteceu muito rápido, então muitas pessoas passaram a ocupar essas regiões mais íngremes", explica.
Uma dessas pessoas é a idosa Joaquina Moreira e Sousa, de 94 anos. Ela conhece bem os desafios de morar em uma das regionais com mais ruas íngremes do município. Ela reside na rua Copérnico Pinto Coelho, no bairro Santo Antônio, na regional Centro-Sul, a que possui a segunda com a maior declividade na capital. "Moro aqui há 45 anos. Não é fácil, mas tenho que me adaptar. Vou fazer o quê? Tenho que subir e descer", brinca a idosa.
Inquieta, ela não se intimida com as características da rua. Diariamente pega a sua bengala e caminha pela via para conversar com os vizinhos. A inquietude e a mobilizada reduzida, por causa da idade, resultaram em algumas quedas. No entanto é com a ajuda da neta que ela consegue cumprir os compromissos e ocupar parte do dia. "Se a rua fosse retinha, talvez eu tivesse mais liberdade. Agora, se chove, acabou, o chão fica molhado e escorrega", relata.
Segundo o diretor de políticas de planejamento urbano da capital, Tiago Esteves da Costas, as condições de deslocamentos nessas vias são consideradas pela prefeitura. "O trajeto do ônibus a gente ajusta. Mas em algumas situações, para pedestres, tem que instalar degraus na calçada para que as pessoas consigam se locomover", explica. Conforme a determinação da prefeitura, a instalação de degraus é opcional em vias com declividade entre 14% e 25%, sendo obrigatória a partir de 25%. "Acima desse índice, a rua fica muito perigosa, escorregadia", completa.
"Quem passa aperto é o busão"
A topografia que faz de Belo Horizonte a capital dos morros impõe ainda mais desafios para uma cidade que é muito dependente de um modelo transporte: o por ônibus. São 295 linhas que transportam durante um mês cerca de 24 milhões de passageiros – os números indicam que uma mesma pessoa pode utilizar o serviço mais de uma vez.
"Se essa condição irregular já é um problema para veículos leves, imagina para veículos pesados. O esforço é muito maior, a durabilidade fica comprometida, o freio se desgasta mais. Em Belo Horizonte, os ônibus sofrem muito mais que em Brasília e Santos, que são cidades planas", explica Sérgio Melo, engenheiro mecânico e professor do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia de Minas Gerais (Ibape-MG).
As características topográficas da cidade, inclusive, são consideradas ao planejar o itinerário das linhas do transporte coletivo de passageiros por ônibus na capital. Para o diretor de políticas de planejamento urbano de Belo Horizonte, Tiago Esteves da Costas, essa é um dos principais desafios para a mobilidade na cidade. “A gente precisa considerar a declividade das vias. Isso faz com que algumas linhas tenham limitações por causa do traçado dessas ruas”, explica.
O engenheiro mecânico Sérgio Melo acredita que a alternativa para a capital seja a ampliação do metrô. Ele considera que, apesar do alto investimento, devido as condições topográficas da cidade, esse modelo atenderia de forma mais satisfatória aqueles que dependem do transporte público. “Praga, na República Tcheca, tem características semelhantes a Belo Horizonte e o metrô funciona super bem. Na instalação das linhas você consegue minimizar os declives, ou seja, é possível uma cidade com topografia irregular ter um metrô que funciona bem”, argumenta.
O metrô de Belo Horizonte possui apenas uma linha, e liga a capital à cidade de Contagem, na região metropolitana. São 19 estações ao longo de 28,1 km de extensão. Com a privatização do metrô, em março deste ano, uma nova estação deverá ser instalada no bairro Novo Eldorado. A previsão é de que seja concluída até 2026. O contrato prevê ainda a criação da linha 2, que contará com sete estações, ao longo de 10,5 km de extensão, até o final de 2029.
“O projeto de construção da nova estação da linha I - Novo Eldorado, quanto a implantação da linha 2, preveem a construção da via permanente do Metrô ao lado da linha férrea, já existente, ou seja, o caminho já é propício a receber um sistema de transporte metroviário, levando em conta as características geográficas”, informa a Metrô BH, empresa responsável pelo modelo de transporte na capital e em Contagem.
Mais morros, mais gastos com combustível
Os impactos da topografia irregular de Belo Horizonte chegam aos bolsos dos motoristas. Isso porque se deslocar em vias íngremes aumenta o consumo de combustível. “Os veículos precisam de maior aceleração e marchas mais reduzidas, o que implica em um gasto maior”, aponta Sérgio Melo, engenheiro mecânico e professor do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia de Minas Gerais (Ibape-MG).
O especialista explica que o consumo pode variar de acordo com o modelo do veículo e a região em que a pessoa se desloca. Melo afirma que carros mais leves tendem a ter uma maior economia. Ele reforça, porém, que o tipo de combustível, seja gasolina ou etanol, não é determinante para um consumo menor.
“Se você tem dois veículos que possuem a aerodinâmica semelhante, aquele que é mais leve gasta menos combustível para chegar ao topo do morro. É muito mais fácil você subir com um carro que pesa mil quilos do que um que pesa dois mil, por exemplo”, justifica o engenheiro mecânico Sérgio Melo. Ele também orienta que carros com câmbio CVT (Transmissão Continuamente Variável) tendem a oferecer um maior consumo em relação aos veículos com transmissão manual e automática convencional.
“O veículo com CVT pode ter um consumo um pouco maior quando se comparado ao de transmissão manual bem dirigido, o que pode não ocorrer. Agora, se o veículo tem transmissão automática, daquela convencional, com tecnologia menos aprimorada, você tende a gastar muito mais combustível”, orienta.