Imagina uma cena do filme “O Guarda-Costas” (1993) sem “I Will Always Love You”, da Whitney Houston. Ou Julia Roberts em “Uma Linda Mulher” sem associá-la imediatamente com a clássica canção “Oh! Pretty Woman” (1990), de Roy Orbison. Faria sentido? E quando você ouve “My Heart Will Go On”, de Céline Dion, imediatamente seu cérebro o leva para “Titanic” (1997), não é verdade?
Desligar uma trilha sonora à uma lembrança é quase impossível quando falamos de clássicos do cinema. A mesma conexão acontece com a comida. Agora, pensar na trilha sonora entra em uma das principais funções a serem definidas por donos de restaurantes e chefs pelo Brasil.
Muitas das experiências oferecidas pelo professor de gastronomia e chef Renato Quintino são acompanhadas de música. A relação, de acordo com ele, é recíproca. “A música é parte fundamental do meu trabalho. Uma canção, às vezes, inspira uma receita ou até uma aula que ensino. É quase tão importante como criar as minhas receitas; música é o que vai estar na atmosfera”, conta.
Em uma de suas confrarias, Renato mergulhou no universo da língua Tupi. Todos as receitas elaboradas foram feitas com ingredientes nativos do Brasil acompanhadas de uma playlist criada por ele com músicas como “Maracatu Atômico”, de Claudya Costta, “Uirapuru”, de Zizi Possi, e “Reconvexo”, de Maria Bethânia.
Paz
Na época das eleições presidenciais e da polarização do Brasil, ele criou uma playlist que teve como norte “A Paz”, de Gilberto Gil, e pratos feitos com ingredientes calmantes e liberadores de serotonina, como camomila, maracujá, abacate e gengibre.
“A playlist precisa ter uma ordem das canções. Ela vai seguindo uma evolução de humores, de momentos… assim é um menu-degustação, repleto de altos e baixos, em vários timbres. E a última música, quando tudo acaba, também é importante”, acredita.
A chef Bruna Martins, à frente dos restaurantes Birosca e Florestal, em Belo Horizonte, estudou saxofone popular na UFMG e se especializou em música brasileira. É claro que a musicalidade sempre foi um pilar definidor de suas criações, a começar pela escolha de Santa Tereza para abrigar seu primeiro restaurante, há 12 anos. O Birosca surgiu mesmo bairro em que nasceu o movimento do Clube da Esquina. Não por acaso, a música brasileira faz parte da trilha sonora do restaurante, muitas vezes executadas por um pianista ao vivo, todas quintas e sextas-feiras. “Aqui não toca batida eletrônica de jeito nenhum; acho cafonérrimo”, diverte-se.
No ano passado, suas pesquisas sobre os peixes de rio resultaram em pratos de valorização do ingrediente e em um menu-degustação batizado de “O Milagre dos Peixes”, disco de Milton Nascimento, lançado em 1973, em que várias canções tiveram suas letras censuradas pelo regime militar no Brasil.
Intuitivo
A empresa “Soundtrack Your Brand”, responsável por transmitir música em locais comerciais, promoveu estudos sobre música ambiental, ao deixar uma playlist de faixas mais tocadas no Spotify tocando durante o período de serviço. A escolha nada intuitiva levou a uma diferença negativa de 9% nas vendas, em comparação com restaurantes que tocavam uma trilha sonora selecionada.
Mas há quem já se atentou à isso. No Rio de Janeiro, o chef Elia Schramm não abre mão de elaborar as playlists, função que ele faz questão de explorar seu repertório musical para combinar com cada ambiente de seus dois restaurantes. “A música é fundamental pra mim; ajuda e transforma o ambiente de um lugar; te guia e passa uma sensação de surpresa, às vezes de forma subconsciente”, acredita.
No banheiro, a música fica ainda mais alta. “É quando a pessoa está sozinha e percebe, de fato, qual é a música que está tocando naquele momento”, disse.
Enquanto o restaurante asiático Si-Chou é repleto de trilhas sonoras de filmes, como “Kill Bill” e “um clima de mistério”, como o chef descreve, no Babbo Osteria, que é repleto de receitas italianas de família, as canções causam sensação de aconchego. “É uma música que lhe abraça e que lhe provoca, sabe?”, afirma o chef.
Nova fronteira da gastronomia
Em uma era imagética – ou excessivamente “instagramável”, investir no pilar musical é a receita de sucesso para muitos restaurantes aplicaram uma experiência memorável. O Alchemist, por exemplo, que fica em Copenhague, na Dinamarca, considerado um dos melhores restaurantes do mundo, é reconhecido por proporcionar uma experiência imersiva aos comensais por trabalhar em campos artísticos na culinária – o que inclui também engenheiros de som. No restaurante de Dabiz Muñoz, chef número 1 do mundo, o som eletrônico no talo potencializa a experiência no DiverXO, e seus pratos repletos de cor e sabor extravagantes.
O jornalista gastronômico Rafael Tonon faz um recorte sobre o contexto de que somos, atualmente, estimulados o tempo todo. O que leva a gastronomia a investir na audição. “Com as redes sociais, preocupamos muito com o visual. E, agora, estamos precisando ir mais além. A audição é a nova fronteira da gastronomia”, disse.
Ainda, de acordo com ele, a música pode ser um ponto de desligamento da realidade com a experiência gastronômica. A receita de sucesso, nesse caso, é fugir das playlists com músicas “mais tocadas do Spotify”. “A música muito conhecida traz o comensal para uma realidade que ele conhece, sabe? E ele lembra do mundo lá fora. O ideal é que o restaurante crie um ambiente que o cliente se esqueça do mundo lá fora. Uma playlist com músicas que a maioria não conhece pode ajudar nesse sentido”, acredita