Leite cru, coalho, sal e pingo. Há mais de 300 anos, essa é a receita do queijo produzido de modo artesanal em Minas Gerais. Na região do Serro, uma das mais icônicas da produção queijeira no Estado, não é diferente. Não por acaso, o Sebrae Minas, em parceria com a Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult), criou a Rota do Queijo – Região do Serro.
Uma das estrelas do novo trajeto é a Fazenda Ventura. Comandada por Eduardo Pires, de 76 anos e a esposa Alice Pires, de 70. Ele mantém viva a tradição iniciada por seus pais em 1940. “Meus pais produziam queijo, arroz e rapadura para vender no Serro. Os queijos eram colocados em caixotes de madeira, forrados com palha de bananeira seca, e seguiam para a cidade. O dinheiro era para o sustento dos 14 filhos, além das vendas de porco, frango e hortaliças. Era muita luta”, relembra.
Após a morte do pai, Pires fez questão de comprar a fazenda para dar continuidade ao legado da família. A aposta tem dado resultado, e o queijo da Fazenda Ventura ganhou reconhecimento dentro e fora do país. Em 2024, levou a medalha de ouro no VII Prêmio Queijo Brasil, em Blumenau (Santa Catarina). No ano anterior, já havia conquistado a medalha de bronze em um concurso mundial na França. “Tenho muito orgulho. Cada produtor tem seu jeito de fazer queijo. No meu caso, deixo descansar, viro, lavo a banda e depois descanso de novo”, comenta.
A influência de bactérias no solo da região confere aos queijos do Serro um sabor característico. A receita do queijo do Serro teria sido trazida para o Brasil no século XVIII por portugueses, mas a técnica foi adaptada à realidade local. O queijo do Serro tem uma acidez sempre perceptível em função do terroir mais úmido e do modo de produção. Seu interior é macio, enquanto a casca é firme quando maturado. O aroma que predomina é o floral, mas quando é frutado, a tendência é ser mais cítrico.
“O nosso queijo combina com frutas secas ou frescas, geleias e méis – tanto o de abelha silvestre quanto o de aroeira, que ainda faz bem para a saúde. Também é excelente com a charcutaria, que harmoniza muito bem com vinhos”, sugere Alice.
Tradição e inovação
No centro histórico do Serro e aos pés da escadaria de pedras de Santa Rita, com 57 degraus largos, o Café da Praça proporciona ao visitante múltiplas harmonizações com o queijo: cafés, doces e vinhos. “A ideia surgiu das consultorias que tivemos com o Sebrae Minas e com a organização do território da Rota do Queijo. Eu já queria fazer experiências aqui na cafeteria com os queijos da região”, afirma Griziele Campos, turismóloga e proprietária do Café da Praça.
Griziele é a quinta geração da família a produzir queijo. A escolha pelo café para harmonizar com o “ouro branco” se dá, como ela diz, por ele ser o “símbolo da gastronomia mineira”. Os vinhos utilizados são produzidos no Serro, assim como os doces.
“O doce de laranja em calda é bem tradicional na nossa harmonização e também na cidade. Ele é de uma laranja-cranvia, muito específica aqui da cidade e feito em muitas fazendas da região. Fazemos a combinação dele com o queijo de casca lavada de maturação de 20 dias”.
Quem vai ao Café da Praça também pode saborear o sorvete de queijo. A "difícil decisão" é sobre qual calda escolher: doce de leite ou goiabada. A sobremesa foi pensada para um festival gastronômico na cidade e, desde então, é sucesso no estabelecimento.
“Temos percebido um aumento no fluxo de turistas e precisávamos criar produtos como a Rota do Queijo para que esse público viesse à cidade. Aqui você não come só o queijo, mas visita fazendas, e isso agrega muito ao visitante”, destaca a proprietária.
Processo de produção
Até chegar ao consumidor final, o QMA do Serro passa por um longo processo que vai desde o cuidado com a alimentação do gado, a ordenha e, finalmente, a produção. Na Fazenda São Jorge, em Conceição do Mato Dentro, Estela Mares Simões, de 59 anos, tem a missão de dar continuidade àquilo que viu ser feito desde pequena. “Eu cresci na beira da bancada de queijo. Minha mãe os produzia e ia vendê-los em Belo Horizonte”, conta.
Depois de fazer carreira em Belo Horizonte e se aposentar, ela assumiu a produção do queijo Dona Iaiá em 2017, junto do marido. O nome homenageia a matriarca Marília Simões, de 86 anos. Em média, mais de 50 queijos são produzidos diariamente por lá.
Estela explica a acidez característica do QMA artesanal: “Ele é prensado à mão e fica com muito soro. Sua acidez é maior e essa é sua característica principal. Quanto mais acidez, mais acentuado é o gosto apimentado. Há também quem ache que eles têm notas frutadas. Então, essa definição do sabor vai depender muito de quem estiver provando. O fato é que o terroir da nossa região é nosso diferencial”.
Tradição familiar na cozinha
O Serro está entrelaçado com a gastronomia mineira. Foi lá que nasceu Maria Lúcia Clementino Nunes, a Dona Lucinha, uma das maiores referências da culinária do estado.
Na cidade, o legado da cozinheira é mantido pela filha, Elzinha, responsável pela Casa e Museu Dona Lucinha. No espaço, visitantes degustam pratos com queijo e quitandas típicas da região.
Depois de 40 anos em São Paulo, Elzinha retornou à cidade natal, restaurou a casa da família e transformou o imóvel em memorial, preservando receitas tradicionais e reunindo parentes.
“Encontrei a casa abandonada. Conversei com meus 11 irmãos, chamei duas pessoas para me ajudar e iniciei”, contou Elzinha.
O que são terroir e pingo?
O terroir é o que dá identidade ao queijo artesanal. O termo, de origem francesa, significa o conjunto de fatores naturais e humanos que influenciam o sabor, a textura e o aroma de um determinado produto.
No caso do queijo, o terroir envolve o clima, o tipo de solo e de vegetação onde os animais se alimentam, a raça do gado que fornece o leite, a microbiota da região (bactérias e fungos presentes no ambiente) e, claro, o saber-fazer do produtor.
Já o pingo é um ingrediente essencial e o segredo da produção do autêntico queijo do Serro. Basicamente, é o soro fermento, ou seja, o soro que pinga da massa do queijo recém-prensado. Ele é coletado e usado para inocular a próxima produção, agindo como um fermento natural.
Esse pingo carrega as bactérias benéficas e a cultura microbiológica da própria fazenda, que é influenciada pelo clima, solo, alimentação do gado e todos os elementos do ambiente. É essa herança do terroir que confere ao queijo do Serro suas características únicas.
Ao usar o pingo, os produtores mantêm uma linha de continuidade, garantindo que a tradição e o sabor do queijo sejam passados de uma produção para a outra, preservando a identidade cultural.e gastronômica para a região.
A rota do queijo e o desenvolvimento local
A Rota do Queijo tem o objetivo de atrair turistas não apenas para conhecer e comprar os queijos dos produtores locais, mas também para que eles tenham uma experiência completa nas cidades. Dos 11 municípios que compõem a região do Serro, três fazem parte da rota: Serro, Conceição do Mato Dentro e Santo Antônio do Itambé.
O balanço do primeiro ano da rota é positivo, como afirma Kele Vespermann, analista de negócios do Sebrae Minas. “O projeto foi muito além do esperado. A performance foi muito rápida. Nós selecionamos empreendimentos que tinham estrutura mínima. Então, fomos às propriedades para desenvolver as experiências turísticas, orientando como eles deveriam receber os turistas para diversificar as atividades econômicas”, explica.
Para Kele, o reconhecimento do modo de fazer o queijo artesanal mineiro pela Unesco foi um fator que contribuiu para a divulgação da rota. “Desde o lançamento, temos recebido relatos dos produtores de que a venda direta para os consumidores aumentou. Alguns deles já nos disseram que as vendas aumentaram 150% e que o turismo ‘salva as contas’ do mês”, detalha a analista.
Serro
A região abrange 11 cidades: Alvorada de Minas, Coluna, Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim, Materlândia, Paulistas, Rio Vermelho, Sabinópolis, Santo Antônio do Itambé, Serra Azul de Minas e Serro.
No total, reúne cerca de 800 pequenos produtores e agricultores familiares, que mantêm viva a secular tradição queijeira.
Roteiro da Rota do Queijo: onde visitar
Conceição do Mato Dentro
Restaurante Cultura
Endereço: Rua Raul Soares, 279 - Centro
Contato: (31) 98653-0157
Conhecido pela culinária local, o Restaurante Cultura oferece uma parada para saborear pratos que combinam tradição e o sabor da região.
Queijaria Dona Iaiá
Endereço: Rodovia MG 010 - km 146,5 - Zona Rural
Contato: (31) 99860-1204
Aqui, você pode conhecer de perto a produção do premiado Queijo Dona Iaiá, mantendo viva a tradição centenária da família.
Serro
Queijaria Ventura
Endereço: Sentido Córrego Ouro Fino
Contato: (38) 99145-2770
Visite a propriedade que produz o queijo premiado da Fazenda Ventura, onde a paixão e a tradição são os principais ingredientes.
Restaurante Quintal de Vó
Endereço: Praça Dom Epaminondas, 120 - Centro
Contato: (38) 98809-2215
Com um ambiente acolhedor, o restaurante serve pratos que remetem à autêntica comida mineira, com o toque de carinho da "vó".
Estúdio Interiores Espaço Criativo
Endereço: Rua Alferes Luís Pinto, 10 - Centro
Contato: (38) 99722-6314
Mais que um estúdio, é um espaço para apreciar a arte e o artesanato local, uma pausa criativa em seu roteiro.
Café da Praça
Endereço: Praça João Pinheiro, 36 - Centro
Contato: (38) 98403-4662
Ideal para harmonizações, o café oferece combinações de queijo com cafés, doces e vinhos produzidos na própria região.
Casa e Museu de Dona Lucinha
Endereço: Rua Antônio Honório Pires, 38 - Centro
Contato: (11) 99644-3223
Conheça o legado de uma das maiores referências da culinária mineira em um espaço que celebra a história e os sabores da família.
Pousada Mariana
Endereço: Praça Floriano Peixoto, 44 - Centro
Contato: (38) 3541-1569
Se precisar de hospedagem, a Pousada Mariana oferece uma localização central para que você possa aproveitar a cidade com conforto.
*O repórter viajou a Conceição do Mato Dentro e a Serro a convite do Sebrae Minas
**Este conteúdo teve colaboração de IA